Especialistas defendem cautela com o fim da emergência sanitária da covid

Movimentação de pessoas no centro da cidade no primeiro dia de flexibilização do uso de máscaras ao ar livre no Estado do Rio de Janeiro.

Especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam que a transição para o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) da covid-19, anunciada pelo governo federal neste fim de semana, deve ser feita com cautela. Ao menos 172 regras e leis criadas – entre elas, o uso emergencial de vacinas, compras de remédios sem licitação e uso de máscaras – no enfrentamento da doença desde março de 2020, quando foi decretada a pandemia do novo coronavírus no mundo, podem ser impactadas com o fim da medida. Nos próximos dias, o governo federal deve editar um ato normativo disciplinando a decisão.

Na noite de domingo, 17, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou em cadeia nacional de rádio e televisão o fim da Espin. Ele atribuiu a decisão à queda nos índices da doença e à vacinação no País, que alcançou 73% da população. Disse ainda que a mudança não significa o fim da pandemia do novo coronavírus e que ainda é preciso ficar “vigilante”. O fim do decreto da pandemia é de total responsabilidade da Organização Mundial da Saúde (OMS).

“É necessário que se faça essa transição com muita cautela. Muitas regras foram criadas após o decreto da pandemia e possibilitaram o enfrentamento da doença. Fora de um cenário de emergência sanitária, você não compra vacinas com facilidade ou sem aprovação de orçamento, não regula fronteiras, não obriga uso de máscaras, nem cria condições de sistemas de vigilâncias epidemiológicos”, pondera o diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri.

Segundo Kfouri, o risco de novas variantes e um cenário mais grave não estão totalmente descartados. “Certamente quando se fala de um vírus com essa imprevisibilidade, há o risco de surgirem novas variantes e a necessidade de termos de comprar vacinas, testes e respiradores e sobrecarregar nossas UTIs. Porém, nada impede que uma medida seja reeditada novamente, se for necessário. Precisamos migrar desse modelo – onde essas ferramentas possibilitaram todos os instrumentos de controle – para um modelo onde podemos continuar monitorando, fazendo sequenciamento genômico, com vigilância de eventos adversos das vacinas e compras das vacinas”, disse.

O diretor da SBIm lembra, por exemplo, que a vacina Coronavac ainda não têm o registro definitivo na Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). Das quatro vacinas que utilizamos no Brasil (Coronavac, Oxford, Janssen e Pfizer), a Coronavac é a única que não tem registro definitivo. Pode perder a condição de registro, a não ser que seja feito acordo com a Anvisa. É preciso cautela nesta transição, levando em conta todos aspectos de diagnóstico, testagem, tratamento, assistências, vacinas, vigilância e medicamentos. O medicamento da Pfizer, Paxlovid, primeira pílula antiviral a receber aval para tratamento da covid no País, também tem aprovação da Anvisa para uso emergencial.

Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e médico infectologista da Universidade Estadual Paulista (Unesp), avalia a decisão como um discurso mais retórico que prático. “Queiroga declarou o fim da emergência, cuja sigla é Espin, mas somente foi algo retórico. Na prática, essa revogação não foi efetuada. São mais de 170 leis e regras, em diversas instâncias do Ministério da Saúde e outros ministérios”, diz. ‘

Ele foca muito no que é o fim dessa emergência em saúde pública, que não é mais necessário o teste de covid-19 para entrada no Brasil e obrigatoriedade de máscaras no ambiente fechado de trabalho. É o que ele cita como importante. É uma decisão mais retórica para agradar certos grupos que na prática”, avalia o infectologista.

Naime Barbosa pondera que, apesar do anúncio, ainda é preciso cautela diante da circulação do vírus. “Precisamos manter o uso de máscara em local fechado, onde há aglomeração. Isso é fundamental. Higienização correta das mãos. Melhorar o discurso assertivo com relação à imunização. Temos apenas 71 milhões de pessoas vacinadas com a dose de reforço. o número pode chegar a 120 milhões. Ter mais campanhas. Também manter a vigilância epidemiológica, prevendo novos surtos, pequenos repiques e variantes de atenção. Com possibilidade de flexibilização caso haja melhora do cenário epidemiológico, mas restrição caso haja piora”, defendeu.

Apesar do anúncio, a decisão precisa passar por um período de transição entre 30 e 90 dias para que os órgãos envolvidos se adaptem. Ou seja, nenhuma lei ou regra será revogada imediatamente. Especialistas esperam ainda que a revogação seja condizente com o atual estado epidemiológico do País.

Raquel Stucchi, infectologista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), considera que a decisão é mais burocrática. “O ministério dará o prazo de adequação. Acredito que a garantia dessa adequação deveria ser feita e planejada corretamente. É a garantia de ter testagem da população quando necessário. Ter as vacinas disponíveis para a população. Garantia de ter antivirais para aquelas pessoas que têm risco de evolução mais grave. Essa é a grande preocupação no momento. Considero que essa decisão de fim de emergência sanitária possa ser feita quando todos esses tópicos já tiverem todos planejados e prontos para serem colocados em operação por todos os municípios brasileiros”

Para ela, consultoria da Sociedade Brasileira de Infectologia, além da Coronavac, pode ser que haja dificuldade na aquisição e mais burocracias para comprar testes de diagnósticos. “Pode se tornar mais burocrático processo de aquisição de testes de covid, o que pode dificultar o diagnóstico da doença e ainda aquisição de antivirais que ainda não fazem parte do SUS, além da vigilância de quadros respiratórios que é algo que existe esboço, mas deveria ser implementado ou atualizado”, defendeu.

Hélio Bacha, médico infectologista, membro do comitê extraordinário de monitoamento da covid da Associação Médica Brasileira (AMB) e consultor médico da Sociedade Brasileira de Infectologia, vê o fim da emergência em saúde pública como precipitado.

“A condição emergencial é o que nos possibilita podermos ter medidas práticas que modifiquem qualquer resposta frente a qualquer agravamento da condição sanitária. Hoje estamos vivendo uma condição de melhora, mas pela experiência de outros países, isso não necessariamente se mantém. Se mantiver, é muito bom. Mas as medidas de emergência poderiam ser mantidas. É uma ferramenta que o ministério tem diante de novos eventos agravantes da pandemia no nosso País”, avalia o especialista.

Agência Estado

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