LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Protagonista de uma campanha que há mais de dois anos mobiliza intensamente a comunidade científica nacional, o fóssil do dinossauro brasileiro Ubirajara jubatus, levado irregularmente para a Alemanha, já tem previsão de retorno ao Brasil.
O Ministério das Relações Exteriores afirmou à reportagem que a devolução do valioso exemplar está prevista para o mês que vem. “Estuda-se a possibilidade de que o fóssil seja repatriado no contexto da próxima visita oficial de alta autoridade da Alemanha ao Brasil, prevista para junho de 2023.”
Apesar da relutância inicial do Museu de História Natural de Karlsruhe, que tem a posse do material, a repatriação do fóssil foi determinada por autoridades de Baden-Württemberg em julho de 2022. Na ocasião, a então ministra da Ciência da região alemã apontou má conduta científica na obtenção do fóssil.
A legislação brasileira estabelece que os fósseis são patrimônio da União e proíbe a sua comercialização.
Esses materiais precisam de autorização oficial para sair do país e, em caso de exemplares de referências das espécies, os chamados holótipos, como o do Ubirajara jubatus, a ida para o exterior é vetada.
Apesar das restrições, devido ao alto valor científico e comercial das peças, os vestígios da pré-história brasileira são alvos frequentes do tráfico internacional de fósseis.
Na avaliação de Hermínio Araújo Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, a devolução do dinossauro é uma vitória da ciência do país.
“O retorno do Ubirajara manda uma mensagem positiva para a comunidade paleontológica do Brasil e da América Latina, que têm lutado conjuntamente. Para os países que promoveram ou promovem o colonialismo científico, isso demonstra que nós não aceitamos mais essas práticas que diminuem a soberania dos nossos países”, afirmou.
De aparência exótica, com jubas nas costas e um par de “varetas” perto dos ombros, o fóssil ganhou atenção mundial ao ser descrito por pesquisadores europeus em um artigo científico em dezembro de 2020. Logo após a publicação, no entanto, cientistas brasileiros se mobilizaram para denunciar a origem irregular do material.
Reunidos na campanha virtual #UbirajaraBelongstoBR (Ubirajara pertence ao Brasil), o grupo inundou as redes sociais do museu e de órgãos alemães para denunciar as irregularidades em torno da saída do material do país.
A mobilização fez efeito e, devido às fortes evidências apresentadas, a revista especializada Cretaceous Research retratou o artigo (retirando sua publicação) com a descrição da espécie. Meses depois, com a continuidade da pressão da campanha, a publicação divulgou que não iria mais aceitar estudos com fósseis “com suspeita de terem sido coletados e exportados ilegalmente de seus países de origem, com proveniência incerta ou depositados em coleções particulares”.
Apesar da pressão, o museu de Karlsruhe vinha se recusando a devolver o dinossauro até a decisão do Conselho de Ministros da região de Baden-Württemberg. Diretor da instituição até janeiro de 2022, o paleontólogo Eberhard “Dino” Frey foi um dos autores do artigo do Ubirajara jubatus. Ele foi sucedido no cargo por Norbert Lenz, que também assinou o trabalho com o dinossauro brasileiro.
Uma das idealizadoras da campanha e autora de artigos sobre colonialismo científico, a paleontóloga Aline Ghilardi, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, diz que a devolução do material será um marco importante.
“Não é a primeira repatriação, mas essa em especial chama a atenção e eu acho que é uma conquista importante, porque a Alemanha sempre foi um dos países mais avessos a esse tipo de acordo e cooperação. Essa repatriação abre um precedente importante não só para a repatriação de fósseis brasileiros, mas para fósseis de forma geral”, destaca.
Em nota, o ministério da Ciência da região de Baden-Württemberg que já não é mais comandado pela ministra que pediu a devolução do material ao Brasil afirmou que as preparações para a repatriação estão em andamento, mas deixou dúvidas sobre o reconhecimento da saída ilegal do material do território brasileiro.
Questionado se haveria uma cerimônia formal de devolução similar às que foram recentemente realizadas para a devolução bronzes do Benin à Nigéria, o ministério disse que isso “não está planejado”.
“Na nossa avaliação, os casos não são comparáveis. Os bronzes de Benin são bens culturais excepcionais que são de importância central para a autoimagem cultural da Nigéria e foram claramente saqueados à força. Eles são um exemplo direto do domínio colonial. No caso da devolução do Ubirajara jubatus, ao contrário, não foi possível comprovar claramente a exportação legítima do objeto; no entanto, um roubo à força pode ser descartado.”
Em entrevista à Folha, o procurador do Ministério Público Federal do Ceará, Rafael Rayol, que há mais de uma década está envolvido no combate ao tráfico de fósseis na região do Crato, reforçou o caráter irregular da saída do fóssil do território brasileiro.
“Fomos atrás dessas informações. Formalmente, o museu alegava que tinha autorização para esse material ter saído do Brasil em 1995. Fomos ver quem dava autorização na época e era o DNPM, que hoje é a Agência Nacional de Mineração. Fomos atrás da documentação e formalmente não há registro desse processo na instituição”, descreve.
O Ministério Público entrevistou o servidor responsável pela assinatura do suposto documento de autorização apresentado pelo museu alemão, que negou ter liberado a saída dos vestígios do dinossauro do país. E, mesmo que ele tivesse, a Promotoria ressaltou que ele não tinha a competência legal para liberar a transação.
“Nós vimos que a autorização era irregular e que a Alemanha, portanto, não tinha autorização adequada. A partir de tratados internacionais, fizemos o pedido de apreensão e repatriação desse fóssil”, completa.
Embora o dinossauro tenha vivido há aproximadamente 110 milhões de anos na zona do Crato, no Nordeste do Brasil, sua devolução à região ainda não é certa.
Segundo a nota Itamaraty, na ocasião da devolução do fóssil ao Brasil, as autoridades alemãs devem incluir uma “visita ao Museu Nacional da UFRJ, onde deverá ser oficializado programa de cooperação técnica e científica entre a entidade brasileira e o Museu de História Natural de Karlsruhe”.
A possibilidade de que o dinossauro fique no Rio de Janeiro não é consensual. A posição oficial da Sociedade Brasileira de Paleontologia é de que o material deve estar em um museu da região de onde saiu.
O museu carioca, porém, diz que não houve negociação formal com os alemães. “O Museu Nacional fica feliz com a perspectiva dessa importante ajuda à reconstrução da instituição. No momento, ainda não fomos oficialmente contatados pelas autoridades da Alemanha”.
Allysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri (Ceará), destacou que a presença do dinossauro no acervo seria importante dentro da estratégia de desenvolvimento territorial sustentável da região.
O paleontólogo também salientou a importância que esses fósseis têm para as comunidades locais.
“Esse patrimônio fossilífero tem uma abordagem mitológica desde os povos indígenas que habitaram e habitam a região, os cariris. Há reinos encantados que foram petrificados, incluindo peixes, insetos, aves, vegetais e outros elementos da natureza, que um dia voltarão a viver em uma outra dimensão, segundo o imaginário. No território dos cariris há vários sítios arqueológicos e mitológicos que são considerados portais para esse mundo encantado”, descreve.
GIULIANA MIRANDA / Folhapress