Na noite de segunda-feira, 13 de fevereiro de 1922, o Teatro Municipal de São Paulo abriu suas portas para receber artistas, estudantes, políticos e membros da tradicional família paulista curiosos em descobrir um tipo diferente de farra: era a inauguração da Semana de Arte Moderna. Porém, logo um certo incômodo se instalou no ar – organizada por artistas irreverentes e contestadores, a Semana (cujas apresentações aconteceram em três dias) apontava para uma mudança estética, rompendo com um passado considerado ultrapassado e abraçando a influência do que mais atual era produzido na época, sobretudo na Europa.
Mas a euforia dos artistas contrastava com a desconfiança e o descaso da plateia, que reprovou boa parte das manifestações apresentadas. No saguão do teatro, foi instalada no dia 11 de fevereiro uma exposição de pintura e escultura, que ficou aberta até o dia 18, com obras de Anita Malfatti, Di Cavalcanti (a quem é atribuída a ideia de se organizar a Semana) e Victor Brecheret, mas cuja recepção foi negativa – o gosto do público brasileiro ainda não estava acostumado às formas “futuristas” de representação propostas pelo grupo.
Há 100 anos, o evento que deu o impulso decisivo ao Modernismo brasileiro ainda desperta aclamações e vaias. O festival de artes plásticas, música e literatura protagonizado por jovens talentos como os escritores Mário e Oswald de Andrade, o pintor Di Cavalcanti, o compositor Heitor Villa-Lobos, entre outros, tornou-se um marco histórico graças ao protagonismo que esses artistas conquistaram nas décadas seguintes, posição que lhes permitiu perpetuar a condição de inovadora da Semana de Arte Moderna.
Nos últimos anos, no entanto, historiadores vêm apontando contradições inevitáveis em qualquer movimento de ruptura, revelando ambiguidades de conquistas tidas como indestrutíveis. Estilos à época apontados como inauguradores já moldavam, anos antes, o trabalho de criadores que não conseguiram o devido reconhecimento e foram relegados a um segundo plano.
Apesar disso, a Semana de Arte Moderna de 1922 se transformou em uma espécie de pedra inaugural da cultura no Brasil, a luz elétrica que finalmente revelava como era escura a arte do passado. O choque, na verdade, já se revelara anos antes, em 1917, com a Exposição de Pintura Moderna, de Anita Malfatti, também em São Paulo. Cinquenta e três obras da pintora foram apresentadas ao lado de trabalhos de artistas internacionais ligados às vanguardas europeias.
Se impressionaram nomes que depois liderariam a Semana, as telas causaram grande desaprovação da crítica conservadora, em especial Monteiro Lobato, que publicou um artigo extremamente negativo, no Estadão, que seria conhecido pelo título Paranoia ou Mistificação? Com traços expressionistas, Anita Malfatti trouxe ao Brasil uma nova estética, em exposição considerada o primeiro “estopim” para a idealização da Semana.
ANITA
O movimento de defesa intelectual da obra de Anita alimentou, ao longo dos anos, uma disposição dos jovens artistas em apresentar suas propostas artísticas e, como 1922 marcaria o centenário da Independência, o ano tornou-se ideal também para uma ruptura nas artes.
Dois nomes logo se tornaram essenciais para a realização do evento: Paulo Prado que, além de escritor, descendia de uma das mais ricas e influentes famílias paulistas e bancou financeiramente a Semana (computando um prejuízo ao final), e Graça Aranha, autor já consagrado e cuja respeitabilidade o alçou a ser o responsável pelo discurso de abertura, naquela segunda-feira.
Aranha previa a sensação de estranheza da plateia ao discursar: “Para muitos de vós, a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de horrores. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pela força do Passado”.
VERSOS
Se ouviu respeitosamente o discurso de Aranha, que ainda declamou versos de Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho, acompanhado de músicas executadas pelo maestro Ernani Braga, o público do Municipal, sobretudo o mais rico, não escondeu depois sua desaprovação.
Naquela mesma sessão, uma apresentação de Villa-Lobos ao piano arrancou tímidos aplausos de um público acostumado a Chopin – todos estranharam o músico vestir chinelos, mas foi obrigado por uma crise de gota. Na segunda noite, dia 15 de fevereiro, o discurso de Menotti Del Picchia recheado de referências modernistas (carros, aviões) foi recebido com vaias pelos estudantes, boa parte arregimentada por Oswald de Andrade, disposto a fomentar a anarquia.
Ele mesmo recebeu apupos e uma chuva de batatas ao tentar ler trecho de Os Condenados. A última noite, 17 de fevereiro, foi a mais tranquila pois o Municipal estava praticamente vazio para acompanhar outras peças criadas por Villa-Lobos. Terminava o evento criticado pela imprensa, ignorado pela classe rica, mas cujas sementes germinam até hoje.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.