MANAUS, AM (FOLHAPRESSS) – “Falaram para o meu vice-tuxaua que vão dar um tiro na minha cara. Tem noite que eu nem durmo.” É assim que o tuxaua (cacique) Sérgio Freitas do Nascimento Mura, 42, do município de Autazes, no Amazonas, descreve as ameaças de morte que passou a receber recentemente, assim como outras lideranças das aldeias Soares e Urucurituba.
A terra indígena do povo mura, não demarcada, está no centro dos interesses do agronegócio, de membros do governo Lula e de políticos locais, em razão do seu potencial como reserva de potássio para a indústria nacional de fertilizantes. A discussão em torno da exploração do mineral, contam lideranças muras, deflagrou conflitos de não indígenas contra as aldeias, onde vivem cerca de 300 famílias.
Em 28 de abril, o MPF-AM (Ministério Público Federal do Amazonas) tornou públicas as ameaças e pediu a inclusão de indígenas no programa estadual de proteção no Amazonas.
A ameaça de morte ao povo mura é o terceiro registro deste tipo de violência contra indígenas em 20 dias, na Amazônia.
No dia 16 de abril, quatro homens encapuzados e armados com fuzis ameaçaram uma aldeia do povo kanamari, no Vale do Javari. O caso foi registrado na delegacia de Atalaia do Norte.
Nas últimas semanas, garimpeiros assassinaram um yanomami e balearam mais dois na comunidade Uxiú, em Roraima. Foram encontrados também outros oito corpos na região a causa das mortes está em apuração.
Sérgio Mura relata que os indígenas passaram a ser vistos como entrave ao desenvolvimento do município de Autazes. “Tiraram a nossa paz”, diz.
Com voz baixa, fala pausada e apertando os dedos das mãos, o tuxaua narra que o medo o fez perder o sono até no dia que estaria no MPF-AM, em Manaus, para relatar as ameaças. “Acordei duas horas pensando neste trajeto de lá [aldeia Soares] para cá [Manaus]. A gente nunca sabe.”
No auditório do MPF, além da imprensa, estavam vereadores e moradores da cidade parte deles contrários à demarcação da terra indígena.
O tuxaua afirma que a ameaça mais recente à vida dele chegou por meio de intimidação ao vice-tuxaua da aldeia Soares, Vavá Izack Mura, 36.
Vavá conta que um fazendeiro da região, simulando um abraço, o apertou e proferiu ameaças. “Disse que, se demarcasse a terra, um de nós dois [Vavá e Sérgio] ele matava. Eu disse que o juízo dele era o mestre. Mas que ele pensasse, porque o que ele poderia fazer com nós os outros poderiam fazer com ele”, afirma.
Os indígenas sob ameaça evitam circular fora do território e longe de suas casas. “A gente anda junto com nossos colegas para ver se dá mais uma segurança”, explica.
O tuxaua da aldeia Urucurituba, Salvador Mura, 51, também recebeu recados de fazendeiros. “Mandaram dizer que eu vou ser o próximo a sair da aldeia”, conta.
O presidente da Associação Indígena Mura, Cláudio Mura, diz que os conflitos pioraram após uma visita da equipe da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) no final de março, em atenção à decisão judicial para demarcação da terra da 1ª Vara da Seção Judiciária Federal do Amazonas.
Para as lideranças indígenas, os moradores da região contrários à demarcação e favoráveis à exploração do potássio são insuflados por fake news.
“Dizem que o único desenvolvimento é fazendeiro, madeireiro e que não tem mura em Autazes. Colocam a sociedade contra a gente. É preocupante porque Autazes é dominada por outras situações não agradáveis e a gente pode a qualquer momento sofrer um atentado”, afirma Cláudio Mura.
Um dos primeiros tuxauas da aldeia Soares, José Jair dos Santos Mura, 84, sofreu pressão para deixar a terra e cedeu. Segundo Jair, foi dito que o terreno seria desapropriado. Ele perdeu a roça e o contato mais próximo com seus parentes na comunidade.
Agora voltar à aldeia requer um custo com que Jair Mura não pode arcar. Um dos que, há 20 anos, iniciaram o pedido de demarcação, o indígena conta que hoje precisa comprar a alimentação que antes lhe era garantida no território.
“A gente ficou sem meio para trabalhar, descontrolou tudo. Compramos um terreno longe que só”, diz.
Além da visita da equipe da Funai, o período de acirramento da tensão entre os muras foi marcado por declarações pró-exploração do potássio feitas por políticos do Amazonas e pelo vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin (PSB).
Em reunião em Manaus em março, Alckmin, que preside o Confert (Conselho Nacional de Fertilizantes e Nutrição de Plantas), não citou a questão indígena ao falar sobre o projeto para exploração do potássio. Em discurso, criticou a demora na definição de que órgão ambiental tem a competência sobre o licenciamento.
Em entrevista coletiva em Manaus, o procurador Fernando Merloto rebateu Alckmin e disse que diante da decisão que determina à Funai o processo de demarcação da terra indígena, o problema levantado pelo vice-presidente como impasse para a mineração é uma questão menor. O procurador defende a competência do Ibama por envolver uma terra indígena.
Para Merloto, o estímulo direto ou indireto ao conflito pode tornar políticos investigados. Ele comparou o processo de exploração de potássio em Autazes ao que ocorreu na construção da usina de Belo Monte, no Pará, que gerou transtornos sociais e ambientais para indígenas e moradores tradicionais, durante governos do PT.
“O governo federal precisa esclarecer. Mineração em terra yanomami não pode, quando é mura pode. Espera lá, a gente tem que ter coerência nas nossas posições”, criticou o procurador.
O ancião Jair Mura diz acreditar que antes de morrer verá sua terra demarcada para garantir que os mais jovens sigam as tradições. Ele afirma confiar no presidente Lula e conta que, mesmo sem ser obrigado, foi às urnas votar em 2022 porque o petista prometeu demarcação.
“Me animaram e eu votei. Se Deus quiser, ele [Lula] vai ajudar a demarcar nossa terra”, diz.
Procurados pela reportagem, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas não se manifestaram.
ROSIENE CARVALHO / Folhapress