RIO DE JANEIRO, RJ E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em frente à lagoa Rodrigo de Freitas, com vista para o Cristo Redentor. Fácil acesso às praias da zona sul carioca. Essas frases poderiam facilmente constar no anúncio de venda de um imóvel com valor elevado no Rio de Janeiro, mas é a descrição do quilombo Sacopã.
Quem mora na capital fluminense ou já visitou a cidade possivelmente percebeu que a região é uma das mais valorizadas do Rio, justamente por causa da localização privilegiada. Porém nem sempre foi assim.
“‘Mas como vocês conseguem um quilombo numa área urbana de frente para o Cristo?’ Mas naquela época isso não era uma área urbana”, conta José Luiz Pinto Júnior, 81, conhecido como Luiz Sacopã, líder da comunidade.
“Lembro que, ainda no meu tempo, quando chovia, a gente ia botar um plástico no pé para sair daqui, para, quando chegar lá fora, botar o sapato, que era tudo barro. Eram só casas, não tinha prédios.”
Quem chegou à região foram seus avós. Na época, entretanto, o local, de mata fechada, não era valorizado.
Assim como outros quilombos urbanos, o Sacopã foi alcançado pelo crescimento da cidade. Décadas atrás, estavam isolados. Atualmente, estão rodeados por prédios.
“Hoje em dia não dá mais para eles invadirem, mas já invadiram o suficiente para fazer um prédio enorme, com 71 apartamentos, e jogar, por incrível que pareça, o esgoto sanitário deles no quilombo. Era um fedor insuportável. Eu tive de ir para a Justiça. Técnicos inspecionaram e disseram que o lençol freático estava afetado.”
A questão com o esgoto do prédio vizinho está resolvida. Ele atribui esse tipo de situação ao racismo. Menciona ainda que não foi a única briga da comunidade.
O quilombo Sacopã teve início com a chegada da família Pinto, no século 19. A comunidade já foi certificada pela Fundação Cultural Palmares e aguarda a titulação da terra pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
A situação não é diferente no quilombo Camorim, comunidade de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro.
Segundo o líder quilombola Adilson Almeida, as invasões e ocupações no local foram constantes nas últimas décadas.
“Em 2015, por exemplo, teve uma construtora que invadiu três hectares do quilombo. Destruiu três hectares de árvores nativas da mata atlântica.”
Almeida diz que, apesar da tentativa de reaver o terreno, a empresa construiu um prédio e vendeu os apartamentos. Por ironia, os novos moradores do empreendimento não conheciam a história do espaço e passaram a considerar os quilombolas como invasores.
“Quando a gente estava aqui fazendo manutenção, muitos moradores ligavam para a polícia falando que a gente estava invadindo o espaço de um território que era do condomínio. Então, vira e mexe a polícia batia aqui na porta.”
Embora a briga com os moradores do condomínio tenha sido resolvida, o terreno não foi readquirido. “Os invasores não somos nós, mas a construtora. Esses moradores têm que entender o local em que estão.”
O Camorim também enfrenta problemas de acesso a políticas públicas. De acordo com habitantes da comunidade, não existe saneamento básico adequado. Outra queixa comum é relacionada à escola, que fica distante do quilombo, fazendo as crianças andarem mais de dois quilômetros para estudar.
Os quilombos, em grande medida, formaram-se no período colonial. Pessoas escravizadas, fugindo da opressão do regime, criavam comunidades. Entretanto, esse não foi o único processo que resultou na formação desses espaços.
A professora do departamento de história da USP Maria Helena Pereira Toledo Machado explica que, algumas vezes, trechos de fazendas e alforrias eram deixados em testamento para alguns escravizados, que criavam comunidades no local.
Existiram ainda os terrenos abandonados ou perdidos pela Igreja Católica, que, aos poucos, foram ocupados pelos escravizados da instituição.
Muitos quilombos também eram volantes, ou seja, deslocavam-se pelo território brasileiro, tanto para escapar de uma eventual captura como para procurar melhores condições, como fontes de água e terrenos propícios para desenvolvimento de agricultura.
“A palavra-chave para entender esse campesinato e esse quilombo é a migração. Migração de pessoas que fogem da escravidão e buscam uma forma de autonomia”, afirma Maria Helena. A própria abolição, segundo ela, também induz esse processo migratório.
É nesse contexto que começam a surgir os quilombos urbanos. Nesse processo migratório, as comunidades se aproximaram das cidades e se instalaram em áreas rurais periféricas. Mas foram alcançadas pela expansão acelerada dos centros urbanos.
Depois de algumas décadas, descendentes se viram envoltos em prédios e ruas asfaltadas. As regiões, muitas vezes, valorizaram-se, o que tornou os quilombos alvo do setor imobiliário, já que as comunidades, em sua maioria, ainda não dispõem do título da terra.
“Isso é uma área que ainda precisa ser mais estudada. Até dez anos atrás era impossível falar em quilombo urbano. Eles nascem ou antes da abolição ou depois. Caiu a ideia de que quilombo se forma somente antes da abolição”, diz a professora Maria Helena.
“Os quilombos urbanos nasceram em comunidades que eram rurais. Nenhum quilombo vai se formar no centro de uma cidade. Ele está na periferia, numa área que não é totalmente rural, é semirrural, onde tem chácaras. Oitenta, cem anos depois é a cidade que alcança o quilombo, e a comunidade vê seu território loteado.”
Os quilombos urbanos não são uma exclusividade do Rio de Janeiro. Capitais como Manaus, Salvador, São Luís e Belo Horizonte reúnem comunidades.
Porto Alegre conta com o primeiro quilombo urbano titulado no Brasil, o Família Silva, localizado em Três Figueiras, um dos bairros com o metro quadrado de valor mais alto do município gaúcho.
“Antes, eu não tinha esperança. Tinha muita gente importante nos apoiando e, mesmo assim, [a titulação] não ia para frente”, conta Lígia Maria da Silva, presidente da comunidade, ao se lembrar da batalha que travou pelo terreno, que fica em frente a um condomínio de luxo.
Neta dos fundadores do quilombo, ela diz que tentaram despejar os moradores da comunidade dezenas de vezes. Ofereceram dinheiro, mas também ameaçaram.
Demorou para que ela e os irmãos tivessem conhecimento sobre o direito à terra. “Mais de um advogado [que trabalhava para o quilombo] se vendeu”, afirma. “Nos enganaram várias vezes.”
De xingamentos a socos em genitália, a violência contra moradores do Família Silva foi constante durante as invasões no terreno, segundo a presidente. Ela diz ainda que a maioria dos conflitos foi orquestrada por brigadistas militares.
Na época, o contato que a comunidade mantinha com o Incra era nebuloso -já que, até então, não havia nenhum quilombo titulado em área urbana. “Eles não tinham experiência com casos como o nosso.”
Foi só em 2009, após anos de disputa pela terra, que Lígia Silva conseguiu suspirar de alívio. Ainda assim, o quilombo Silva tem parte de suas terras jogada à incerteza. No total, são seis os terrenos habitados pela comunidade. Mas somente três estão titulados.
A presidente não desanima e diz ter fé na titulação dos demais espaços. “Sempre falo para não desistir.”
TAYGUARA RIBEIRO E MARINA LOURENÇO / Folhapress