Liceu Pasteur, 100, sobrevive à especulação imobiliária e ao marketing das escolas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A trilha sonora da entrevista com diretores do Liceu Pasteur foi o som de um bate-estacas da obra de mais um prédio em construção na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. E o tema da conversa era o centenário do colégio, fundado em 17 de maio de 1923 naquele mesmo local, uma região então afastada da área urbana da capital, em um terreno que pertencia ao famoso arquiteto Ramos de Azevedo.

Foi ele quem projetou o prédio da escola, depois de ter colocado a sua assinatura em marcos da arquitetura paulistana, como a Pinacoteca do Estado (1905) e o Theatro Municipal (1911). Na sequência, viriam, entre outros, a Faculdade de Medicina da USP (1931) e o Mercado Municipal (1933).

Em 1923, quando surgiu o Liceu, quase nada havia naquela parte descampada da pacata cidade, com menos de 600 mil habitantes, além da estação de um bonde. Os intelectuais e empresários brasileiros e franceses que, com o incentivo do governo da França, haviam fundado o Liceu, logo conseguiram que uma extensão da linha do bonde passasse em frente ao colégio, na rua que seria batizada de Mairinque.

O episódio ilustra o papel que a escola teria na urbanização da Vila Mariana. Cem anos depois, algo a se comemorar é que os 15.327 m2 que o Liceu ocupa tenham sobrevivido à especulação imobiliária deste que se tornou um bairro de classe média alta na mais populosa metrópole do país.

Enquanto caminha pelo colégio com a reportagem da Folha, o ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab (PSD), 62, presidente da fundação que administra o Liceu, aponta para edifícios do entorno que não existiam quando ele foi aluno de lá, de 1965 a 1978.

Seu pai, o médico e escritor Pedro Kassab, era o diretor-geral e lá matriculou os sete filhos. A família morava em Pinheiros, na zona oeste, mas, sem o trânsito de hoje, a distância pesava menos, e a turma era levada à escola pela mãe, a professora Yacy Kassab, em uma Kombi.

O ex-prefeito e atual secretário de governo da gestão Tarcísio Freitas (Republicanos) conta que, apesar de o pai ser o diretor e do clima de autoritarismo no Brasil sob a ditadura militar, ele se sentava “no fundão”. Mas não se recorda de haver militância política. “A única eleição de que participei no Liceu, e que foi a primeira da minha vida, foi para capitão do time de futebol. E venci”, brinca.

Ele e cinco de seus irmãos saíram do Liceu diretamente para cursos da USP (Universidade de São Paulo). Uma formação que preparasse o estudante para o ingresso nas melhores faculdades brasileiras estava entre os objetivos dos fundadores. Um antigo jornal do colégio, chamado A Voz, abordou, em edição de 1938, a “exigência de disciplina” e o “rigor aos estudos”, necessários para manter os alunos “bem acima da maioria dos outros colégios” para que “se preparem para entrar nas escolas superiores”.

De Kassab à cantora Rita Lee, a lista de ex-alunos ilustres é grande, e entre eles estão o maestro João Carlos Martins, o banqueiro Walther Moreira Salles, o médico Drauzio Varella, o economista Paul Singer e a jornalista Lillian Witte Fibe.

O projeto do Liceu se insere em uma estratégia francesa, do pós-Primeira Guerra, de expandir sua influência política e cultural na América Latina. A intenção inicial era, inclusive, a de fundar no Brasil uma universidade, o que não se concretizou.

Essa ideia não está mais no horizonte, segundo Cláudio Kassab, 52, irmão do ex-prefeito e diretor-geral do colégio. O que se busca hoje é consolidar a unificação pedagógica da escola original, a da rua Mairinque, a outra inaugurada pelo mesmo grupo em 1964, em um terreno de 11 mil m2 na rua Vergueiro. Na primeira unidade, o ensino sempre foi o regular brasileiro com uma forte carga de aulas de francês; a segunda deu início a um currículo bilíngue português e francês, com diploma válido para o Brasil e a França.

Desde 2019, ambas formam o Grand Lycée Pasteur, plurilíngue: além do português e do francês, há o ensino de inglês obrigatório e o optativo de alemão, espanhol, grego e latim. As unidades estão sendo, gradativamente, fundidas pedagogicamente e divididas por turmas, de modo que, com a conclusão da unificação, o prédio da Vergueiro abrigue do infantil até o 7º ano e, o da Mairinque, do 8º ano até o fim do ensino médio.

A unificação mira a sobrevivência do Liceu em meio à onda de novas escolas bilíngues português/inglês na educação brasileira. Atualmente o colégio tem 1.500 alunos. O horário é integral, e a mensalidade, graças a um subsídio dado pelo governo da França, custa cerca de R$ 3.500, valor abaixo do de outras escolas paulistanas de elite.

O novo projeto mesclou mais profundamente docentes e alunos brasileiros a franceses, não sem alguma tensão diante de contrastes culturais. Recentemente, o uniforme deixou de ser obrigatório, como ocorreu a partir de 1968 nas escolas públicas francesas –no início de 2023, na França, a extrema-direita causou polêmica ao propor que o uniforme se tornasse obrigatório, o que foi rejeitado pelo Parlamento.

No Liceu Pasteur, o não uso do uniforme, em um primeiro momento, soa antagônico àquela arquitetura tradicional dos janelões, pé direito alto e pátios centrais. A escola mantém móveis quase centenários, de madeira escura, e não se comove com a “estética startup” que tomou escolas, com visual clean, paredes claras e pufes coloridos no chão.

As chamadas metodologias inovadoras de ensino, em voga em escolas caras (incluídas de fato no projeto pedagógico ou usadas só como marketing) parecem passar longe do Liceu. A diretora pedagógica, Stella Palmisano, 75, torce o nariz quando a reportagem pergunta desses métodos, como o ensino maker (mão na massa) e o da educação centrada no aluno. Não vê problemas no fato de a linha pedagógica da escola ser chamada de tradicional.

Cláudio Kassab concorda que o colégio siga, em parte, conservador, mas afirma que o protagonismo dos estudantes, sim, é algo que foi adotado. “A gente certamente ouve mais o aluno hoje do que acontecia anos atrás.”

Mas não há preocupação em vender esta ou aquela imagem. Diferentemente de outras escolas famosas, o Liceu não tem assessoria de imprensa ou departamento de marketing. A mediação entre a Folha e a diretoria da escola foi feita por Suelene D’Alkimin, 72. Mãe de ex-alunas e secretária do colégio há 34 anos, ela guarda em seu computador fotos históricas do Liceu, que exibe à reportagem com orgulho.

O Liceu ainda não havia investido em um trabalho para organizar a sua memória, que tem relevância para a história paulistana e da educação brasileira. Mas isso está sendo feito agora, por ocasião do centenário.

A historiadora e professora da USP Marisa Midori prepara um livro sobre o colégio, ao lado de outros dois pesquisadores, Roney Cytrynowicz e Monica Musatti Cytrynowicz. “Estamos organizando a documentação, que estava espalhada nos dois prédios, e descobrindo histórias fantásticas”, diz.

Ela leu depoimentos de ex-alunos que falam de uma rigidez extrema, mas diz acreditar que essa característica, longe de ser exclusiva do Liceu, seja anterior à Segunda Guerra.

“A educação era muito antiquada até o fim do século 19, em boa parte religiosa e que fazia uso até de castigos físicos”, lembra. “E o Liceu se inseria em uma proposta mais modernizante, de um ensino laico”, conta. “Podemos dizer que era rígido, mas progressista.”

Chama a atenção da historiadora “uma visão humanista, não da educação ‘decoreba’, mas que ensina a pensar, além de uma preocupação com a ideia de socialização dos alunos, inclusive a partir dos esportes, algo novo para a época”.

Havia, conta Midori, um olhar para a saúde, para a ideia de corpo são, mente sã. E até propaganda disso a escola fez. Nos primeiros anos, em que funcionava também como internato, divulgou um panfleto com foto dos banheiros e o anúncio “banhos quentes no inverno”. Da mesma forma, uma ata antiga registrou a decisão de que os alunos seriam obrigados a tomar banho após os esportes. Rigidez, digamos, justificável.

LAURA MATTOS / Folhapress

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