TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – A França está num “processo de descivilização” segundo seu próprio presidente, Emmanuel Macron.
O termo, que sugere a degradação das relações sociais e entre o Estado e os cidadãos, foi usado pelo líder francês numa reunião ministerial no último dia 24 após uma semana marcada por episódios de violência.
“Temos que ser intransigentes”, disse ele. “Nenhuma violência é legítima, seja verbal ou contra pessoas. Precisamos trabalhar em profundidade para combater esse processo de descivilização.”
A avaliação do chefe de Estado da França, país considerado berço da civilização moderna Ocidental, onde foi produzida a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, dividiu a classe política e intelectual francesa às vésperas de uma nova mobilização popular contra a reforma da Previdência.
Greve e protestos contra o texto rejeitado pelos franceses, mas aprovado pelo governo Macron mesmo sem o aval da Câmara dos Deputados, foram marcados para esta terça-feira (6), renovando as tensões em torno de um tema que deflagrou uma crise política e uma convulsão social no país.
O movimento chegou a reunir mais de 1,1 milhão de pessoas, de acordo com o Ministério do Interior -ou 3,5 milhões, segundo os organizadores-, e foi fortemente reprimido por forças de segurança após casos de depredação e incêndio. Agora, retoma as ruas dias depois de a cineasta francesa Justine Triet defender o movimento e criticar Macron na tribuna da cerimônia de premiação do Festival de Cannes.
“Essa contestação [da reforma da Previdência] foi reprimida de maneira chocante, e este padrão de poder dominador, cada vez mais desinibido, está irrompendo em vários domínios”, denunciou Triet, vencedora da Palma de Ouro deste ano. O mal-estar causado pelo discurso fez o presidente romper o protocolo ao não felicitar publicamente aquela que rendeu à França sua décima Palma de Ouro em 76 anos de festival.
E é justamente a desinibição que marca o início do processo de descivilização, afirma à Folha o historiador Hamit Bozarslan, autor do livro “Crise, Violência e Descivilização” (CNRS, 2019).
“A civilização não significa liberdade, muito pelo contrário, ela é um jeito de conviver socialmente que requer a aceitação de restrições e a interiorização dessas inibições”, diz ele, citando o sociólogo alemão Norbert Elias, autor de “O Processo Civilizatório” (Companhia das Letras), escrito em 1939 e que enxerga essa desinibição no processo de ascensão do nazismo na Europa.
Ao falar em descivilização da França, porém, Macron fez referência a episódios recentes no país, em que uma enfermeira foi assassinada no hospital onde trabalhava, três policiais foram mortos por um motorista alcoolizado, e o prefeito de Saint-Brevis pediu demissão depois que sua casa foi incendiada por militantes de um partido local de extrema direita contrário à instalação de um centro de acolhimento de refugiados.
“São episódios brutais de violência, ainda que não seja a primeira vez que ocorra algo assim na França”, pontua o diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. “A violência nunca é aceitável, mas a sociedade francesa não é mais violenta do que há 40 ou 50 anos, salvo casos pontuais. O uso do termo descivilização não me parece correto neste caso. Elias o usou para falar de nazismo.”
Dados de criminalidade violenta na França apontam para uma estabilidade no número de homicídios e de outros tipos de agressão física nos últimos 20 anos, em contrapartida a um aumento das agressões não físicas, como injúrias. “É utópico imaginar que um dia teremos uma sociedade sem violência nenhuma. E, no meu livro, aponto que a única alternativa para o fim da violência cotidiana seria por meio de algum tipo de totalitarismo”, afirma o historiador. “Por outro lado, qualquer Estado, por meio do uso da violência, pode ser uma ameaça à democracia e a uma sociedade pacífica, portanto, a um contexto civilizado.”
Críticos da expressão usada por Macron associaram sua escolha às expressões controversas já utilizadas por seu ministro do Interior, Gérard Darmanin, tais como “selvagização da sociedade”, “islamo-esquerdismo” e “ecoterrorismo”, usadas para deslegitimar diferentes formas de contestação ao governo.
Para Bayart, cujo ensaio “Para Onde Vai a França?”, publicado na revista Le Temps, embasou parte do debate em torno da retórica macronista, “o próprio governo francês está sofrendo de descivilização”. “Seu uso desproporcional de coerção física para reprimir manifestações, resultando em centenas de feridos e até mutilados, rendeu à França a condenação da ONU e da Corte Europeia de Direitos Humanos.”
No entanto, afirma ele, a frase de efeito do presidente foi usada “para manter as coisas vagas, mesmo que isso signifique envenenar o debate público”, porque, como há poucos leitores de Elias na França atual, o termo descivilização evocou “o pensamento do romancista de extrema direita Renaud Camus”, cujo livro traz o termo como título. Camus é também autor da teoria xenofóbica segundo a qual a França estaria à beira de uma “grande substituição dos chamados franceses ‘nativos’ por imigrantes muçulmanos”.
A dúvida sobre a origem almejada pelo presidente ao evocar esse processo descivilizatório da França pende para Camus quando analisado à luz da proposta de reforma da lei de imigração da França a ser apresentada pelo governo e que promete endurecer os parâmetros anti-imigração.
Para Bayart, ex-diretor do Centro de Estudos Internacionais da SciencePo, a retórica de Macron de “nem direita nem esquerda” destruiu tanto a esquerda quanto a direita e abriu caminho para a ultradireita no país. “Suas políticas, como a reforma da Previdência, estão alimentando o voto na extrema direita, e a ambiguidade de sua posição ideológica pessoal ajudou a tornar o Reunião Nacional mais respeitável.”
Segundo o cientista político, autor de “A Energia do Estado” (La Decouverte, 2000), o partido de ultradireita de Marine Le Pen é o que está em melhor posição para colher os frutos eleitorais da era Macron.
Le Pen se apressou em saudar a nova retórica presidencial sobre a descivilização da França. “Na realidade, Macron está mais uma vez provando que estávamos certos em nossa observação”, disse ela. “É uma pena”, completou, que Macron “esteja acordando num momento em que a situação já é muito ruim”.
FERNANDA MENA / Folhapress