Madrinha Eunice, ícone negro do samba, ganha estátua em praça de SP

Foto: Agência Brasil

 

Para alguns, ela é a matriarca do samba em São Paulo. Outros, carinhosamente, chamam-na de “vovó do samba”. Baluarte do ritmo na capital, Deolinda Madre, mais conhecida pelo apelido Madrinha Eunice, agora está imortalizada, em bronze, na Praça da Liberdade. Com 1,7 metros de altura por 60 centímetros de largura, a sambista de saia rodada, turbante, colares e pulseiras, é retratada de uma das maneiras que mais gostava de estar: dançando.

A obra da artista Lídia Lisboa é a segunda do projeto que vai homenagear, no total, cinco personalidades negras da cultura paulista, promovido pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura. O tributo é um passo importante no reconhecimento da ancestralidade africana na capital, destacam especialistas e ativistas.

Madrinha Eunice fundou, em 1937, a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva da Escola de Samba Lavapés Pirata Negro. Mais antiga escola de samba ainda em operação na cidade, em 2022, completa 85 anos. Até os 87 anos, quando morreu, a paulista esteve à frente da escola e também do clube de futebol associado a ela. “(Era) de uma liderança formidável”, conta a neta Rosemeire Marcondes, de 55 anos.

Conforme lembra a neta, que é presidente de honra da Lavapés, uma das principais lutas da avó foi pela oficialização e pelo reconhecimento do carnaval. “Ela foi um dos baluartes do samba, a primeira mulher negra, independente, avante do seu tempo, naquela época de 30, época de Getúlio Vargas, da ditadura, ela lutou, lutou e conseguiu.”

A Lavapés, conforme artigo “Madrinha Eunice e Geraldo Filme: memórias do carnaval e do samba paulistas”, do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, foi inovadora e ousada. Em uma terra de “cordões” se denominava “escola de samba” e desfilava ao som desse ritmo, fazendo referência aos grupos do Rio.

Comerciante, Madrinha Eunice era economicamente independente e inspirou gerações de mulheres a buscarem pelo mesmo. “Ela ensinou muito para as mulheres que se pode viver sem precisar de ninguém, cuidando de seus filhos, cuidando de sua família, com bastante luta e tranquilidade”, destaca a neta.

Pesquisadora do Instituto de Artes da Unesp e uma das idealizadores do documentário “Lavapés: Ancestralidade e Permanência”, Carminda Mendes André diz que a vivência mostra um “feminismo muito forte em solo nacional”, e faz pensar sobre as origens do movimento.

“Normalmente, quando a gente começa a falar sobre o movimento feminista, vamos muito nos anos 60, nos Estados Unidos, com as mulheres brancas”, fala. “Quando a gente se depara com a história da Madrinha Eunice… ela foi uma mulher que não se submeteu, por exemplo, a se manter com o marido, porque tinha a sua própria história. Era uma mulher de espírito independente.”

Desde a morte da avó, Rosemeire luta pelo reconhecimento da importância dela para a cultura paulistana. “Foi muito honroso não só para o samba de São Paulo, mas para o povo negro, essa estátua ser instalada no bairro da Liberdade.” Ela afirma que, desde a imigração japonesa, as origens pretas do bairro estavam sendo apagadas e esquecidas.

Carminda vê a estátua como parte de um movimento de reconhecimento das raízes africanas da Cidade. “É um modo de começar a recontar a história São Paulo sobre o ponto de vista dos negros”, diz. “É uma maneira de trazer à tona uma memória ancestral.”

‘Se fez’ na Liberdade

Filha de escravos alforriados, nasceu em 1909, na cidade de Piracicaba, no interior paulista. Veio à capital aos 11 anos. Sempre viveu nas imediações do bairro da Liberdade, na área central de São Paulo, onde, nas palavras da neta Rosemeire, “se criou e se fez”.

Estudou até o quarto ano do primário e, ainda nova, largou os estudos para vender limões em uma banquinha. Independente e a frente de seu tempo, chegou a ter quatro grandes bancas de venda de frutas, que sustentavam os três cômodos que alugava em uma casa na Rua da Glória.

Era frequentadora assídua de festas religiosas, como a de Bom Jesus de Pirapora, e festejos carnavalescos, como o do Brás. Em 1936, conheceu o carnaval da Praça Onze, no Rio. Queria ver o festejo que presenciou na capital fluminense em São Paulo. Assim, junto a amigos e familiares, fundou a Lavapé.

Quando tinha 20 e poucos anos, a neta não lembra bem, conheceu Francisco Papa, o Chico Pinga, com quem se casou. Algumas décadas depois, separou-se dele, quando o marido pediu para que escolhesse entre ele e a escola. Ela escolheu o samba.

Mesmo sem poder ter filhos biológicos, teve 41 afilhados, pelas contas da neta. Daí veio o apelido de Madrinha Eunice. Os três cômodos da Madrinha tinham sempre entre oito e dez hóspedes, aos quais ela oferecia fartura.

Religiosa, era da quimbanda, mas, segundo a neta, frequentava também a Igreja Católica. O Exu dela era Veludo, patrono da escola. Carminda avalia que para a Madrinha, o carnaval ia muito além da folia. “A gente aprende, com Madrinha Eunice, que fazer carnaval, não é só a brincadeira, mas é também o louvor a suas entidades, que são afrobrasileiras.”

Presidiu a escola até seus últimos dias. Artística, foi “embora cantando”, como lembra a neta. Faleceu devido a complicações da diabetes aos 87 anos.

Projeto

A primeira estátua do projeto do DPH teve a primeira escultura inaugurada em dezembro do ano passado. Foi um tributo ao cantor Itamar Assumpção e está localizada no Centro Cultural da Penha (zona leste). Além de homenagear personalidades negras, os artistas também são pretos.

Ainda no dia 21 de abril, está prevista a inauguração da obra em homenagem ao músico e sambista Geraldo Filme, na Praça David Raw, na Barra Funda (zona oeste). Em maio, o atleta Adhemar Ferreira da Silva será imortalizado em escultura.

Lançado em setembro, o projeto tinha previsão de finalização em 180 dias a partir do lançamento. Porém, “especificidades técnicas dos procedimentos de construtivos das esculturas” demandaram o adiamento da conclusão. O prazo de 180 dias, então, passou a ser contado da instalação da primeira estátua, em dezembro.

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