Terceira de uma série de exposições individuais dedicadas aos maiores pintores modernos do século 20 no Brasil, a retrospectiva de Alfredo Volpi (1896-1988) será aberta no Masp nesta sexta, 25, e traz no título o mesmo designativo que suas antecessoras. Volpi Popular, com quase uma centena de obras do artista, talvez não venha a ser tão popular como a de Tarsila Popular (2019), recorde de público do museu (408 mil visitantes). Ou a da primeira da série, Portinari Popular (2016). Justificável. A pandemia não acabou e o museu não opera com plena capacidade. Mas popular, sem dúvida, Volpi ficou, embora não populista. Sua pintura exige um olhar educado para ser mais bem apreciada. Volpi até foi um pintor operário, tendo começado no ofício pintando painéis, florões e frisos, mas tinha uma inteligência visual que raros intelectuais têm.
A obra de Volpi foi construída aos poucos, de 1914 a 1980, evoluindo com a observação da pintura dos velhos mestres (Giotto, Piero della Francesca) e dos modernos (Cézanne, Matisse e Morandi, em particular). Não tem o mínimo vestígio de nada. O curador de Volpi Popular, Tomás Toledo, que também é curador-chefe do Masp, chama a atenção para essa combinação de espontaneidade e reverência pela história da pintura, além do apreço de Volpi pela iconografia popular, apontando para as imagens de seus santos na mostra.
É justamente esse o núcleo inicial de Volpi Popular que recebe o visitante no Masp. Entre madonas e anjos negros, uma santa nua escrava do pecado (Maria Egipcíaca) e um São Sebastião que parece evocar a construção hierática da cultura egípcia, a sala de abertura é apenas uma mostra da versatilidade de Volpi, que muitos associam às populares “bandeirinhas” (que, afinal, eram figuras de outra ordem). A exposição traz exemplos de cada uma dessas distintas etapas da carreira de Volpi, de telas dos anos 1940 (sua primeira exposição foi em 1944) até as do último período, passando pelos santos dos anos 1960. Só não estão lá as pinturas da fase concreta dos anos 1950.
“Optei por não incluir as telas desse breve período por entender que a racionalização concreta não era da natureza de Volpi, foi apenas uma experiência”, justifica. “E não se pode concluir que venha do concretismo sua tendência à geometrização ou ao sintético”, conclui Toledo.
BANDEIRINHAS
Com certeza, até as “bandeirinhas” nasceram da representação dos telhados das casas de Itanhaém (na mostra), e não de uma construção abstrata concretista. Formam contra o céu a figura de um triângulo subtraído de outra peça geométrica sugerida nesse jogo gestáltico entre pintor e espectador. Para entender as partes, é preciso compreender o todo – e, nesse sentido, o percurso pelos sete núcleos da exposição vai revelar ao visitante a razão de cada uma das mudanças e os “achados” na obra de Volpi.
A exposição traz pinturas raras pertencentes a colecionadores particulares (como a sereia que Volpi pintou em 1962, um belo óleo sobre tela encomendado pela Cia. de Navegação Costeira, hoje na coleção Mastrobuono). Normalmente, o pintor usava a têmpera, que ele mesmo preparava de modo artesanal, seguindo a receita italiana – e um exemplo dessa maestria está numa pintura do mesmo ano, um Cristo crucificado (todo branco) em que a cruz (lilás) divide a tela como se fossem “fachadas” (verdes). O curador Toledo chama a atenção para o fundo dessas telas de santos, que sempre evocam a separação espacial do mundo físico e espiritual por meio de cortinas, como nas telas de Piero della Francesca (e um exemplo dessa recorrência é Madona com o Menino, de 1964).
“Com certeza esse rosa do vestido da Madona é um rosa renascentista, que ele viu em sua viagem italiana”, observa o curador. Volpi viajou para a Itália em abril de 1950, acompanhado dos amigos pintores Mário Zanini e Rossi Osir. Ficou tão deslumbrado com o que viu que fez nada menos do que 18 viagens a Pádua para ver os afrescos de Giotto (1267-1337). O resultado dessa fixação no pintor, elo entre Bizâncio e o Renascimento, é visível em várias pinturas figurativas da exposição. Exemplo disso é o singelo retrato de um menino de roupa branca sentado (da década de 1950) num banquinho (nesta página), que esteve exposto na 1ª Bienal de São Paulo (1951). É puro Giotto: a figura parece estar em lugar nenhum, entre o purgatório e o paraíso, mas iluminada em sua plena verdade poética.
As fachadas de Volpi, embora representem a das velhas casas da arquitetura colonial brasileira, devem igualmente algo às visitas de Volpi à Capella degli Scrovegni, em Pádua – basta apenas compará-las à casa da Virgem Maria em A Anunciação (1304-1306) na mesma capela. Dito assim, parece que Volpi era um carola. “O curioso é que Volpi era ateu”, diz o curador Toledo. Ma non troppo, a julgar pelo autêntico esforço em transmitir a seus santos uma expressão humana, com uma perfeita adesão moral ao mundo dos mortais, numa dualidade entre o divino, permanente, e a experiência transitória dos homens.
LÚDICO
Os sete núcleos da exposição Volpi Popular estão divididos assim: santas e santos; cenas rurais e urbanas; retratos; marinhas e temas náuticos; fachadas; bandeirinhas, mastros e faixas; temas lúdicos. Os retratos refletem a postura de Volpi diante de uma sociedade cheia de preconceitos como a brasileira: ele mesmo casado com uma mulher de ascendência africana, Judite, usou-a como modelo em diversas ocasiões – uma delas com uma nudez escancarada e inocência pagã. A tela, de 1949, que também pertence à coleção Mastrobuono, esteve na 6ª Bienal (1961) na sala especial dedicada ao pintor. É quase uma Anunciação profana (Judite surge como a Virgem, de seios de fora, entre duas cortinas). O curador cita como outro exemplo da resistência de Volpi ao modelo eurocêntrico a imagem de uma Madona negra com o Menino, pintada em 1947.
Da série lúdica destaca-se uma das versões de Acrobata (Mané Gostoso), dos anos 1950 – há uma outra, no MAC, que pertenceu à coleção do psicanalista e crítico Theon Spanudis, um dos descobridores de Volpi, que doou em vida seu acervo ao museu da USP. É o tipo de pintura que justifica o título da mostra: adotando como modelo um brinquedo popular de um trapezista suspenso entre duas tiras de madeira e criado por José Otávio Silva, de Camocim de São Félix, Pernambuco, Volpi fez do boneco a síntese de sua relação com o mundo infantil – o pintor criou perto de 20 filhos adotados em sua casa no Cambuci, vivendo de maneira franciscana.
FACHADAS
Esse despojamento é traduzido não só nos retratos que fez de São Francisco de Assis, na primeira sala da mostra, como na última, em que estão as fachadas e os mastros que remetem às festas populares brasileiras. Uma fachada com canoa, do fim dos anos 1940, antecipa as composições geométricas que marcariam sua obra da década de 1950 em diante. O curador da mostra aponta a substituição da dinâmica figura da sereia na sala anterior por um barco inerte no interior da casa, como num daqueles arranjos que as crianças de antigamente faziam com os blocos de madeira de um popular brinquedo para estimular a imaginação arquitetônica dos pequenos. O barco, por sua vez, sugere uma lua minguante, aproximando o pintor de um tema soturno, o da morte.
Há uma melancolia solene presente nessas construções. O crítico Lorenzo Mammì, em sua monografia sobre Volpi, a respeito de sua breve adesão ao Concretismo, diz que as melhores telas desse período “não expressam tanto a busca da objetividade quanto o pudor de uma subjetividade que, à força de depurações, se tornou forma geométrica”. Acompanhando a mostra, será lançado na abertura um catálogo sobre o artista num único volume, trazendo reproduções de todas as obras exibidas.
Volpi Popular Masp Avenida Paulista, 1578. 4ª a dom., 10h / 18h; 3ª, 10h / 20h. Fecha 2ª. R$ 50 (gratuito na terça). Ingressos apenas online (masp.org.br). Até 5/6.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.