Nem sabia que mulher podia ser juíza, diz ex-cortadora de cana na infância

JUAZEIRO, BA (FOLHAPRESS) – As lembranças de infância da juíza criminal Antônia Faleiros, 59, foram suavizadas pelo tempo. “Há uma aura de nostalgia que embeleza.” Mas basta uma conversa mais longa para revelar memórias difíceis de uma criança que aos 12 anos foi trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar.

Primeira filha de seis irmãos, Antônia nasceu e cresceu na comunidade de Barro Vermelho, zona rural de Serra Azul de Minas, município de Minas Gerais que hoje tem pouco mais de 4.000 habitantes.

Em 1975, ela diz que ficou sem estudar porque na cidade só tinha turmas até a quarta série. “Os filhos de quem tinha dinheiro iam para outras cidades. Eu não tinha essa possibilidade”, afirma.

Esse foi o ano em que começou a trabalhar para contribuir com a renda familiar. O vale do Jequitinhonha, onde morava, era um exportador de mão de obra masculina.

Nas comunidades, diz que restavam mulheres e crianças -levadas, segundo ela, para o trabalho infantil. “Havia preferência por arregimentar crianças por serem mais controláveis, pela própria inocência.”

Antônia diz que foi trabalhar na região de Curvelo, lugar de cultivo de cana-de-açúcar para a produção de rapaduras.

Algumas lembranças da época foram destravadas ao reencontrar, nas redes sociais, outras vítimas. Trabalhavam na roça, não tinham salário e tampouco carteira assinada, afirma.

Nos alojamentos da fazenda, separados entre meninos e meninas, lembra-se que comiam e dormiam todos amontoados. Para ter alguma privacidade, ela diz que as garotas improvisavam cabanas.

Ouvia relatos do medo que muitas tinham dos abusos sexuais. Ali, entendeu logo cedo o que é ser mulher em uma sociedade machista, afirma.

Após a safra daquele ano, Antônia diz que voltou a trabalhar na própria cidade, lavando roupas no rio. Em 1976, implantaram a quinta série, e foram abrindo turmas ano a ano até 1979.

O incentivo aos estudos vinha de sua mãe, que foi proibida de estudar na infância pelo pai. “Ela tinha percepção da importância da educação e me deu o impulso inicial. Hoje, eu só vejo a educação como escada, como forma de alcançar”, afirma.

Foi o esforço da mãe, desdobrando-se em costuras para pagar seus estudos, que permitiu a Antônia ir para um internato religioso em Serro, onde cursou o magistério, a partir de 1982. Para bancar as mensalidades, afirma que foi faxineira da escola e deu aulas de reforço.

Após o ensino médio, foi morar em Belo Horizonte. Na capital, ela diz que o racismo bateu em sua porta com mais força. Ao procurar emprego, era barrada pelo critério de boa aparência.

“Na época, eu não conseguia entender o que estavam falando, aí me avisaram para prender o cabelo. Era um marcador social muito forte na questão da negritude”, diz.

A situação se agravou quando uma parente não quis mais que ela morasse em sua casa. “Em uma certa noite, ela me disse: amanhã você não volta para cá. Foi um episódio bastante doloroso”, afirma.

Ela diz que o abrigo passou a ser um ponto de ônibus, onde ficou quase seis meses de noites em claro, estudando e fingindo que esperava a condução para disfarçar sua situação.

O trabalho de doméstica foi uma solução, porque garantia a moradia no “quartinho de empregada”. “Nossa mentalidade escravocrata se revela em duas categorias: trabalhadores rurais e empregadas domésticas”, diz.

Ao procurar emprego no jornal, viu o anúncio de um concurso público. Mas as barreiras sociais ainda eram muitas. Sem condições de comprar a apostila, ela afirma que recolheu folhas descartadas pela copiadora no lixo e passou a decorar trechos.

Em 1984, aos 21 anos, foi aprovada em terceiro lugar para oficial de justiça do Tribunal de Justiça de Minas. Começou a cursar direito na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e formou-se em 1991.

Prestou outros concursos, inclusive para a área de magistratura. Advogou por um bom tempo, atuou como delegada, procuradora do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e teve vários cargos na área jurídica, afirma.

No final de 2002, tomou posse como juíza do Tribunal de Justiça da Bahia, mas afirma que isso nunca foi um sonho. “Eu queria comer, eu queria ter um sapato. Juíza, eu não sabia que existia e nem que mulher poderia ser juíza, muito menos com a minha cara.”

Hoje, atua na 1ª Vara Criminal de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, onde é conhecida pelo jeito simples. Anda a pé, viaja de ônibus e se envolve em trabalhos sociais em comunidades. Ano passado, recebeu o Prêmio Maria Felipa, que reconhece o trabalho de mulheres negras no estado.

Mestra em Segurança Pública, Justiça e Cidadania pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), agora atua como professora e palestrante. Diz que usa suas experiências nos tribunais e na vida para inspirar futuros profissionais da Justiça.

“A história de vida pode ser linda e inspiradora, mas não nos credencia a nada. O que nos credencia é o que somos no dia a dia”, diz. “Eu me policio para não ter distanciamento em relação às pessoas e, dentro das minhas possibilidades, estender a mão a quem esteja em uma situação de vulnerabilidade.”

ADRIANO ALVES / Folhapress

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