SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Da entrada da casa ao portão dos fundos, 20 palmeiras-imperiais perfilam um amplo terreno às margens da represa Billings. Pelo caminho, pés de pau-brasil, jacarandá, cambuci e jabuticaba. Pássaros, muitos deles migratórios, cantam por toda parte. Dia desses, um trecho da vegetação foi destruído durante medição da área que está na mira para ser desapropriada.
Ela ocupa 6.000 m2 do nº 1.084 da rua do Mar Paulista, em Pedreira (zona sul). A propriedade, que hoje abriga um viveiro de mudas e é morada da família Borghese, vai ser incorporada a um dos principais projetos em curso pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), o Aquático. Será o primeiro sistema de transporte público hidroviário de São Paulo implantado nas águas da represa Billings.
Ligará os bairros de Cocaia a Pedreira. As estações hidroviárias serão conectadas a terminais de ônibus, ambos também a serem construídos dos dois lados da represa. A previsão é que o novo sistema passe a operar a partir de outubro.
Pelo trajeto, o plano Aquático prevê, em terra, desapropriações não só residenciais como comerciais.
A iniciativa pegou muita gente de surpresa. “De repente, tudo aqui, construído pelos meus pais em 30 anos, vai ser destruído”, conta a estudante Páola Oliveira Borghese, 19, ao caminhar pela área verde, que se conecta à sua casa. Na travessia, sete cães, sete gatos, 20 galinhas, três gansos, sem falar na passarada.
Com lotes de, no mínimo, de 1.000 m2, as construções só podem ocupar 20% do terreno nas áreas margeadas da represa, em Pedreira, por se tratar de ambiente com área de recuperação e preservação ambiental.
“De forma desumana, chegaram aqui, tiraram medidas do terreno, destruíram plantas da minha mãe”, diz Páola, referindo-se à presença de uma equipe ligada à SPTrans que visitou os Borghese e a vizinhança sem dar muita explicação, segundo eles.
Há 30 anos o empresário Roberto da Costa, 64, construiu uma casa espaçosa, com dois pavimentos e um lago de água corrente que abriga carpas, na lateral esquerda da residência. A privilegiada vista da represa que se obtém da varanda deve durar pouco tempo. Bem em frente à casa de Costa, a prefeitura prevê construir o terminal de ônibus interligado ao atracadouro do Aquático.
Ultimamente, o empresário anda inconformado. “A rua do Mar Paulista não foi desenhada para suportar essa carga de pressão que irá receber”, diz. “Durante o período de seca, parte da represa, que consta do trajeto dos barcos, fica com o espelho de água bastante baixo, com pontos de areia, o que irá inviabilizar o tráfego de embarcações.”
Com um vínculo histórico de ligação com o reservatório, Helena Schevtschenko, 69, cresceu numa casa construída pelo avô, nos anos 1940, quando ele imigrou da Ucrânia. É a quinta geração da família a viver por ali. “A água da Billings era tão limpa que dava para ver o fundo e os peixinhos”, recorda-se. “Nossa família sempre apreciou o contato com a natureza.”
Acostumada a sofrer diferentes tipos de agressão, de lançamento de esgoto à destruição da vegetação, a Billings, na visão de quem cresceu familiarizado a mirá-la da janela de casa, irá descaracterizar-se de vez, afirma Helena.
O reservatório começou a ser construído em 1925, enquanto as ocupações irregulares nos arredores da represa passaram a se suceder com frequência a partir dos anos 1970 e atingiu o pico incessante de moradias em área de mata atlântica nos anos 1990.
Com cerca de 1 trilhão de litros de água, o reservatório, cujo nome está ligado ao engenheiro norte-americano responsável pelo projeto, Asa White Kenney Billings, abrange os municípios de São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.
Somente na região do distrito de Grajaú, um dos maiores bairros da capital paulista, calcula-se que ocorra o despejo de esgoto sem tratamento de uma população estimada em 100 mil moradores, observa a bióloga Marta Marcondes, 62, uma das maiores especialistas na Billings.
Marta tinha 13 anos quando começou a praticar esportes náuticos na represa e a esmiuçar cada pedacinho do reservatório. Coordenadora do Projeto IPH/USCS (Índice de Poluentes Hídricos da Universidade Municipal de São Caetano do Sul), que analisa a qualidade da água de nascentes, rios, córregos e reservatórios, ela explica que o projeto de hidrovia passará pelo chamado corpo central da represa.
Nele, existe uma espécie de iceberg formado por resíduos, com restos de móveis, plástico, pneus, fios de rede de pesca, uma variedade de lixo, sem falar no acúmulo de esgoto.
“É uma área em que, dez anos atrás, a profundidade chegava a 25 metros”, lembra. “Hoje, está em torno de 70 centímetros de água tomada por essa montanha de dejetos”, explica a bióloga.
Ela afirma ainda que a futura movimentação de barcos do projeto Aquático irá revolver todo o resíduo sedimentado no fundo da represa. Diz também que a área prevista para o tráfego de embarcações é o lugar onde registra-se a pior qualidade da água de todo o reservatório.
Desde 2016, a cearense Rozeni Alves, 41, pesca ali, ao lado do marido. Com o dinheiro da venda de peixes, sustenta a família. Rosa, como é conhecida, teme que a movimentação de barcos impacte diretamente na pesca. “Hoje, já é difícil encontrar peixe. Teremos que ir cada vez mais longe à procura deles”, diz ela, moradora do bairro de Cocaia.
Sem dúvida, o Aquático é um dos principais projetos que o prefeito pretende apresentar em sua campanha em 2024 para reeleição à prefeitura, reconhece o próprio Nunes. A proposta foi sugerida por ele em 2014, quando ainda era vereador.
“Tenho uma relação de paixão com esse projeto”, diz. “Sou daquela região, mantenho um vínculo com as represas, tanto a Billings quanto a Guarapiranga, apesar de não saber nadar”, conta.
Nunes afirma que estudos já foram feitos e que não há impedimento em relação às questões ambientais. “Inclusive”, segue ele, “o objetivo visa ter barco elétrico no futuro”.
De acordo com o prefeito, o projeto envolve ainda um plano de repaginação nos arredores da Billings. “As represas são patrimônio da cidade, mas as pessoas ainda não se sentem participantes desses lugares”, diz. Ele acredita que os reservatórios têm potencial para se tornarem referência turística. “Estamos criando um novo paradigma.”
Cita como exemplo o sistema de transportes hidroviários de cidades europeias, como Londres e Amsterdã, mas se esquece do histórico problema de esgoto, lançado diretamente em diferentes áreas da represa, onde o odor fétido, sobretudo em períodos de seca, predomina.
Como costumam dizer os que habitam as redondezas da Billings, o cheiro e o descaso em relação à represa são de revirar o estômago.
ROBERTO DE OLIVEIRA / Folhapress