BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) – Era 30 de janeiro de 2020. A OMS (Organização Mundial de Saúde) declarava o novo coronavírus como emergência de saúde de importância internacional. No Brasil, o Ministério da Saúde fazia uma coletiva de imprensa para informar sobre possíveis casos em investigação e medidas como a ampliação de leitos de UTI no SUS.
O que parecia indicar um cenário de preparação prévia contra a Covid, porém, acabou por se transformar ao longo dos últimos três anos em uma sequência de erros que incluem ausência de uma política organizada de controle da doença, aposta em remédios sem eficácia, apagão de dados e atrasos na compra de vacinas.
O resultado foram mortes que poderiam ter sido evitadas, apontam especialistas, secretários de saúde e ex-gestores ouvidos pela reportagem.
Nesta sexta (5), após quase 7 milhões de mortes, a OMS declarou que a Covid-19 não é mais uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (Espii).
Embora não elimine os desafios em relação à doença, a mudança na classificação acaba por dar um novo marco a um dos períodos de maior impacto na saúde pública do país e do mundo.
Atualmente, o Brasil é o segundo país em número acumulado de mortes pela Covid, atrás apenas dos Estados Unidos. Desde o início da pandemia, são 701 mil mortes. Na prática, é como varrer do mapa uma capital inteira, como Cuiabá ou Aracaju, ou até 336 cidades de menor porte.
O caminho que levou a esses números foi marcado por trocas de ministros, divergências entre discursos de autoridades sanitárias e do então presidente da República e momentos de colapso no sistema de saúde.
Ao longo dos últimos três anos, foram cinco ministros da Saúde. Os dois primeiros, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, deixaram o cargo em meio a atritos e divergências com o então presidente Jair Bolsonaro (PL). No caso de Mandetta, pesou a defesa por medidas como o uso de máscaras e isolamento social, o que Bolsonaro era contra. Com Teich, o revés ocorreu com a pressão do Planalto para a ampliação da oferta da cloroquina, já na época sem evidências contra a Covid.
“Ele [Bolsonaro] queria que a Saúde não fizesse regras básicas”, afirma Mandetta à Folha de S.Paulo. “Depois entraram numa de desfazer a credibilidade do ministério e ridicularizar tudo.”
Para especialistas, o apagamento do Ministério da Saúde que chegou a ficar quatro meses sem titular oficial e a ausência de um discurso comum a favor de medidas de prevenção foram alguns dos primeiros erros da gestão da crise gerada pela Covid no Brasil.
A percepção também consta de dossiê da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), que aponta entre as “falhas graves” na condução da epidemia fatores como baixa testagem e isolamento de casos, desestímulo ao uso de máscaras, promoção de tratamentos ineficazes, atraso na compra de vacinas e falta de comunicação unificada.
Além da omissão, a resposta brasileira foi marcada pela tentativa do Ministério da Saúde de deixar de divulgar dados completos do total de casos e mortes pela doença, o que levou à formação de um consórcio de veículos de imprensa para noticiar os números.
“O Brasil perdeu a chance de ser um país exemplar no combate ao coronavírus”, afirma a pneumologista Margareth Dalcolmo, uma das profissionais de saúde mais atuantes na pandemia. “E a razão para isso foi por uma decisão política de ignorar o conhecimento científico.”
Para ela, houve uma “tensão desnecessária entre a retórica governamental e o papel dos cientistas e da comunidade médica e acadêmica”.
Frases do ex-presidente se tornaram marcantes nesse contexto. Na prática, ao mesmo tempo em que estados adotavam diretrizes de isolamento e uso de máscaras e hospitais sentiam a pressão na busca por leitos, Bolsonaro dizia que o poder do coronavírus estava “superdimensionado” e que havia uma “histeria” em torno de uma “gripezinha”.
Secretário de Saúde do Rio Grande do Norte desde 2019 e hoje presidente do Conass, que reúne gestores estaduais de saúde, Cipriano Maia lembra dos impasses do início da pandemia. “Era um contexto de extrema dificuldade”, afirma. “Principalmente por falta de uma coordenação nacional, negacionismo e confrontação às medidas adotadas pelos estados.”
Ele cita como exemplo a defesa feita por membros do governo de remédios que faziam parte do chamado “kit Covid”, mas que não tinham indicação para a doença. Exemplo disso é que, em junho de 2020, na gestão interina do general Eduardo Pazuello, a Saúde elaborou um protocolo que ampliava a oferta de cloroquina para casos leves da doença.
Uma medida que, embora rechaçada pela comunidade científica, encontrou eco em uma parte da classe médica e alguns prefeitos. “Virou uma questão de disputa política”, lembra Lorena Barberia, professora de ciência política da USP e membro do Observatório Covid BR.
Ela resume a resposta brasileira à emergência da Covid como uma busca por “soluções mágicas” em detrimento de ações articuladas e que pudessem ser mantidas a longo prazo.
Um exemplo é o fato de que, enquanto insistia na oferta desses medicamentos, o Brasil deixou de aplicar testes capazes de ajudar no rastreio e monitoramento da doença. Metas para ampliação da testagem, anunciadas ao longo de 2020 e 2021, nunca foram atingidas. Na contramão, a pasta chegou a acumular estoque de 1,1 milhão de testes prestes a vencer.
“É gritante ver que discutimos mais tratamento precoce do que testagem no primeiro ano. Muitas pessoas politizaram muito a resposta, o que inclui hospitais, e houve práticas criminosas que custaram vidas”, afirma Barberia, em referência a casos investigados em CPIs.
Para Rosana Onocko, da Abrasco, a ausência de uma coordenação nacional impactou no desempenho da rede de saúde. “O SUS foi heroico no sentido de dar respostas, mas poderia ter se saído melhor se tivesse tido um bom comando”, avalia.
Maia, do Conass, concorda e vê na descontinuidade de políticas um dos erros mais marcantes no período. “Isso se agravou com a crise em Manaus, em que vários estados tiveram que acudir, mostrando o descalabro.”
Na época, a cidade teve colapso da oferta de oxigênio, e relatos apontam que os leitos viraram câmaras de asfixia. Em tentativa de contornar a crise, pacientes foram transferidos para outros estados.
Enquanto isso, o ministério divulgava um aplicativo que recomendava cloroquina até para bebês.
O tema foi alvo de questionamentos da CPI da Covid, cujo relatório apontou negligência para evitar o colapso no Amazonas e outros problemas em série, como irregularidades em negociações de vacinas e demora para comprar imunizantes.
Atualmente, a vacinação é apontada como o principal fator para a redução de internações e mortes pela Covid.
A estratégia, porém, começou de forma lenta e restrita. Dados divulgados pela Folha de S.Paulo em 2021 mostram que a gestão de Pazuello negou seguidas ofertas de doses de vacinas da Pfizer que poderiam ter iniciado a campanha mais cedo.
Com a saída do general em março de 2021, coube ao sucessor, o cardiologista Marcelo Queiroga, a tarefa de ampliar a vacinação. Estados, porém, ainda reclamam da distribuição irregular de doses e do impacto de fake news, parte delas estimuladas em falas do ex-presidente, na campanha de imunização.
Para Dalcolmo, o caso é um dos paradoxos que marcam a gestão da crise da Covid no Brasil. “Fomos começar a vacinação em janeiro de 2021, quando, por ter feito estudos de fase 3, poderíamos ter feito precocemente, como em países europeus. E começamos num ritmo muito aquém do desejável.”
Em 2022, estudo publicado na revista Lancet Regional Health Americas mostrou que 47 mil mortes de idosos por Covid seriam evitadas se a vacinação começasse acelerada.
Avançar em campanhas para recuperar não vacinados é um dos desafios que devem persistir independentemente da classificação da emergência, segundo especialistas e gestores.
“O papel da retórica governamental foi extremamente nocivo. Precisaremos de campanhas esclarecedoras”, afirma Dalcolmo.
Maia, do Conass, concorda. “No início, vivemos quase uma guerra da vacina, com grupos disputando quem ia vacinar primeiro. Depois, fomos tendo mais vacinas, mas faltou discurso firme e motivação da população para melhorar a cobertura. É um desafio que ainda vai permanecer”, diz ele, que aponta outros, como o próprio monitoramento da epidemia e a recuperação de atendimentos represados.
O Ministério da Saúde anunciou para fevereiro uma campanha com a vacina bivalente (que protege contra a variante ômicron) para grupos prioritários, como idosos em alguns locais, o público apto ao imunizante já foi ampliado. A pasta informou ainda sobre uma campanha publicitária para aumentar a confiança na vacinação.
NATÁLIA CANCIAN / Folhapress