Pesquisadores reconstroem processo que levou à definição da estrutura do DNA

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – A descoberta da estrutura do DNA, que acaba de completar 70 anos, revolucionou a compreensão que temos sobre os seres vivos, mas também tem sido vista por parte do público e dos cientistas como uma injustiça histórica.

Os louros da descoberta ficaram com o britânico Francis Crick e o americano James Watson, ganhadores do Nobel de Medicina. Entretanto, havia indícios de que eles teriam usado sem permissão dados obtidos pela química Rosalind Franklin para formular seu célebre modelo da molécula de DNA, o da “dupla hélice” ou escada torcida.

Seria, portanto, um caso clássico de má conduta acadêmica e machismo científico, por conta do menosprezo à contribuição de Franklin. Documentos recém-encontrados, no entanto, indicam que o quadro real que levou à descoberta histórica é mais complexo. Tudo indica que a pesquisadora estava ciente do compartilhamento de seus dados com Watson e Crick e compreendia boa parte das implicações de seu trabalho.

Essa é a tese defendida por uma dupla de historiadores da ciência, Matthew Cobb, da Universidade de Manchester (Reino Unido), e Nathaniel Comfort, da Universidade Johns Hopkins (EUA). Em artigo na última edição do periódico especializado Nature, os dois reconstroem o processo que levou à definição da estrutura do DNA, agora levando em conta os novos documentos que trouxeram à luz.

“Franklin merece ser lembrada não como uma vítima da dupla hélice, mas como alguém que contribuiu de forma igualitária para a descoberta de sua estrutura”, escrevem eles.

Os historiadores da ciência costumam considerar que o processo de elucidação do formato da molécula de DNA teve seu clímax em 25 de abril de 1953, com a publicação de um artigo assinado por Watson e Crick detalhando seu modelo. No entanto, esse trabalho veio na esteira de vários anos de trabalho, durante os quais Franklin havia dado contribuições cruciais.

As evidências de que o DNA era capaz de conter a “receita” para as características das células e dos organismos vivos como um todo eram fortes desde os anos 1940, mas ninguém ainda tinha ideia de como isso poderia acontecer. Muitos cientistas achavam que o DNA era uma molécula simples demais para essa função, por causa de sua natureza aparentemente repetitiva, que vai se sucedendo com pequenas variações.

Para entender melhor como a molécula atuava, era crucial compreender sua estrutura. Rosalind Franklin, que passou a trabalhar no King’s College de Londres a partir de 1951, pôs-se a enfrentar esse problema por meio da técnica de cristalografia de raios-X. Nesse processo, a molécula que vai ser estudada é transformada em sua forma cristalina e bombardeada com raios-X. Na época, isso era feito na frente de uma chapa fotográfica, o que produzia um padrão específico de imagens. Essa “foto”, por sua vez, era interpretada de maneira a estimar qual o formato mais provável da molécula sob análise.

Com base em relatos como o do próprio James Watson, em seu livro autobiográfico “A Dupla Hélice”, consolidou-se a ideia de que Franklin havia produzido a imagem mais importante do DNA até então, a chamada Fotografia 51. Ela, porém, não teria conseguido interpretar direito essa imagem cristalográfica. O então chefe de Franklin, Maurice Wilkins, teria mostrado a cristalografia a Watson sem permissão, o que, por sua vez, teria permitido que ele e Crick por fim elucidassem a natureza da dupla hélice do DNA.

Segundo Cobb e Comfort, no entanto, o cenário descrito no último parágrafo é uma reconstrução muito simplista do que realmente aconteceu. Eles lembram que os principais dados obtidos por Franklin já tinham sido compartilhados abertamente entre a chefia do laboratório dela e o da Universidade de Cambridge onde Watson e Crick trabalhavam.

Além disso, os historiadores encontraram uma carta de janeiro de 1953, escrita por Pauline Cowan, colega de Franklin no King’s College, convidando Crick para uma palestra da autora da Fotografia 51 sobre seu trabalho com cristalografia de DNA. Ao mesmo tempo, Cowan diz que provavelmente o chefe de Crick já tinha repassado para ele as partes mais importantes do conteúdo da palestra. Portanto, o mais provável é que os achados de Franklin já estivessem circulando abertamente entre a comunidade científica britânica, sem necessidade de que Watson e Crick passassem a perna na pesquisadora.

Além disso, afirmam os autores do artigo, Watson e Crick passaram seis semanas tentando montar seu modelo da estrutura do DNA de forma independente, usando cálculos químicos e peças de papelão. “Eles não roubaram os dados do grupo do King’s College e magicamente resolveram a estrutura do DNA. Na verdade, eles montaram a estrutura usando sua própria abordagem e depois usaram os dados [de Franklin] para confirmá-la”, resumem eles.

A documentação dos anos 1950 também mostra que Franklin havia percebido uma das propriedades essenciais do DNA: o fato de que a repetição de unidades, em diferentes combinações, poderia funcionar como um alfabeto, um livro que armazenaria as informações genéticas. Portanto, ela também estava chegando perto de compreender a natureza dos seus dados, ao contrário do que muita gente ainda acredita.

Um dos motivos pelos quais Watson e Crick acabaram chegando na frente dela foi o fato de que as relativamente poucas cientistas do sexo feminino na época tendiam a ficar de fora das conversas informais entre pesquisadores em que as trocas de ideias continuavam após o expediente. Na época dela, por exemplo, havia outras cientistas no King’s College, mas elas não podiam entrar no “salão comum” da universidade –um espaço onde os pesquisadores do sexo masculino podiam se reunir nas horas vagas.

“O que faltava a Franklin era o que Watson e Crick tinham: um ao outro, alguém com quem conversar, com quem discutir e argumentar. É incrível que ela tenha conseguido chegar tão longe quanto chegou praticamente sozinha”, disse Cobb à reportagem.

Ela acabou morrendo de câncer em 1958, com apenas 37 anos. O Nobel para a descoberta da estrutura de DNA veio em 1962, e ela foi preterida, em parte, porque o prêmio é dado apenas a cientistas ainda vivos.

REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress

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