MILÃO, ITÁLIA, E TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Uma grave crise econômica, um terremoto trágico e uma frente de oposição que uniu seis legendas. Nunca antes Recep Tayyip Erdogan esteve tão perto de sair do governo da Turquia, que ocupa há 20 anos.
No entanto, o primeiro turno realizado neste domingo (14) mostrou que o líder, que busca mais uma reeleição, mantém uma base consistente de apoio e entra com vantagens na disputa inédita de segundo turno.
Com quase 100% das urnas apuradas, o atual presidente ficou em primeiro lugar, com 49,5% dos votos, enquanto o líder da oposição, Kemal Kilicdaroglu, obteve 44,89%. A eleição será finalizada no confronto direto entre os dois em 28 de maio, já que nenhum dos candidatos superou a marca dos 50%. É a primeira vez na história moderna da Turquia, iniciada há um século, que a corrida presidencial vai para o segundo turno.
“O resultado do primeiro turno foi surpreendente porque houve uma inversão daquilo que apontavam as pesquisas, que Kilicdaroglu tinha vantagem sobre Erdogan. As urnas mostraram a mesma diferença, mas a favor do presidente”, aponta à reportagem a socióloga turca Gulcin Erdi, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França.
Segundo ela, algumas hipóteses ajudam a entender essa reviravolta. A primeira é que os institutos de pesquisa tiveram falhas em suas metodologias e não captaram a real inclinação do eleitorado. A segunda é que a saída do candidato Muharrem Ince da corrida três dias antes do pleito tenha beneficiado mais Erdogan do que Kilicdaroglu.
Por fim, é possível que os turcos não tenham declarado suas verdadeiras intenções aos pesquisadores. “Para uma parcela da população, com a crise política e o péssimo desempenho do governo no terremoto, ficou difícil assumir publicamente o voto em Erdogan”, afirma Erdi.
Erdogan viu o número total de eleitores subir desde 2014, quando, após promover mudanças nas regras eleitorais, venceu a disputa presidencial com aproximadamente 52% dos votos válidos no primeiro turno. Então, precisou de 21 milhões de cédulas para vencer. Quatro anos depois, em 2018, repetiu o feito, com quase 53% dos votos –emitidos por 26,3 milhões de cidadãos.
Desta vez, o líder nacionalista conservador recebeu 27 milhões dos 54,7 milhões de votos válidos, e a presença dos eleitores turcos foi recorde: 88% deles, ou 64 milhões de pessoas, registraram seus votos no pleito.
Erdogan venceu em 51 províncias, contra 30 do principal adversário. Kilicdaroglu, ex-funcionário público e parlamentar há duas décadas, foi vitorioso nas regiões onde estão as duas maiores cidades do país, Ancara, a capital, e Istambul –que votaram majoritariamente no atual presidente em 2018.
Este, por sua vez, levou a maioria dos votos da grande área central. Minoria marginalizada por Erdogan, os territórios curdos, na região sudeste, escolheram Kilicdaroglu.
Mesmo áreas afetadas pelo terremoto de fevereiro mantiveram seu apoio ao líder atual, apesar das críticas que ele recebeu pela reação lenta e por problemas de corrupção e falta de controle em regras de construção.
Em Kahramanmaras, cidade no sudeste turco que registrou mais de 12 mil mortes após o desastre, ele teve quase 72% dos votos. Em Hatay, localidade na mesma região que teve 23 mil óbitos, a disputa ficou empatada, com 48% para cada um.
Para a socióloga Erdi, a resiliência do apoio a Erdogan não é algo que possa ser explicado racionalmente, mas por questões emocionais. “Seus eleitores são muito fiéis e acreditam no poder e na capacidade de Erdogan de encontrar soluções para os atuais problemas turcos, ligados tanto à crise econômica quanto à reconstrução do país depois do terremoto”, afirma. “Eles acham que, neste contexto, é mais seguro ficar com um líder experiente que eles já conhecem do que se arriscar com uma liderança nova.”
Além disso, avalia, pesam o carisma do atual líder, a prosperidade vivida no país durante seus 15 primeiros anos de governo e uma política externa “ofensiva, que exalta o nacionalismo turco ao criar a imagem de uma Turquia forte e independente, que não se dobra aos interesses da União Europeia e que tem um papel importante no conflito entre Rússia e Ucrânia”.
Sob Erdogan, a Turquia tornou-se uma potência regional e um ator relevante no cenário internacional ao exercer uma política externa guiada pela autonomia e a diversificação. Ao mesmo tempo em que é membro da Otan, a aliança militar ocidental liderada pelos EUA, ele se aproximou da Rússia de Vladimir Putin nos últimos anos.
A base de apoio consolidada também foi comprovada com a eleição para o Parlamento. A aliança do atual presidente conquistou a maioria absoluta das 600 cadeiras ao garantir 322 assentos –muito à frente da oposição, com 213. A vitória no Legislativo é considerada uma vantagem importante de Erdogan para o segundo turno.
Além disso, o atual presidente larga na frente por dispor de um aparato de mídia amplamente favorável. No país, o mercado sofre forte influência do Estado, por meio de anúncios, e tem boa parte das Redações controladas por aliados de Erdogan. Críticos costumam ser intimidados.
A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) divulgou nesta segunda (15) um relatório acerca do processo eleitoral. Segundo o documento, os canais públicos de rádio e TV dedicaram 44% de sua cobertura para a aliança de Erdogan durante a campanha, em tom positivo na maior parte das vezes. Para a oposição, restaram 28%, cuja cobertura salientou sobretudo os aspectos negativos da coalizão.
Para Erdi, essa cobertura midiática é crucial para explicar o resultado do primeiro turno. “Os vídeos da campanha de Erdogan são reproduzidos por esses canais de maneira acrítica e quase instantânea, o que faz deles máquinas de propaganda pró-governo”, afirma.
“São informações que exaltam os feitos do presidente, ao mesmo tempo em que deixam de apresentar propostas da oposição. E, mais grave, veiculam notícias falsas, como uma que sugere que Kilicdaroglu teria assinado uma aliança com o PKK, a guerrilha curda, o que é mentira, mas é muito eficaz diante de eleitores nacionalistas.”
Outro fator que teria desequilibrado a disputa foi o uso da máquina pública de forma geral. “No último mês, eu e todos os turcos não pagamos a fatura de gás, por exemplo. E quando Kilicdaroglu sugeriu aumentar o salário dos servidores públicos, Erdogan correu para conceder o aumento, ainda que tivesse se declarado contrário à medida publicamente semanas antes.”
Para Erdi, a possível reeleição de Erdogan para um mandato de mais cinco anos deve sacramentar uma “era sombria para a Turquia”, de vulnerabilidade ainda maior para intelectuais de oposição e para jornalistas, já que os ataques à democracia e aos direitos humanos devem comprometer ainda mais a liberdade de expressão no país.
“A vida cotidiana das pessoas será fortemente impactada pela imposição cada vez maior do islã, com a ascensão de políticos religiosos ultrarradicais e mudanças de regras que devem chegar à Constituição.”
MICHELE OLIVEIRA E FERNANDA MENA / Folhapress