RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Como ser confundido em mais de 60 anotações criminais?”, perguntou o juiz ao porteiro Paulo Alberto da Silva Costa na primeira audiência de que participaria após mais de nove meses preso.
“É difícil, mas eu nunca roubei ninguém”, respondeu o acusado na audiência de dezembro de 2020.
Foram necessários mais de três anos desde a prisão de Paulo para que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) apontasse o erro na pergunta do magistrado de primeira instância.
“A afirmação do ofendido [vítima] que identifica agente do crime não é prova cabal. Do contrário, a função dos órgãos de estado seria relegada a segundo plano, a mero homologador da acusação”, afirmou a ministra Laurita Vaz.
Paulo foi solto na noite de sexta-feira (12) por determinação do STJ após ser acusado em 62 ações penais, sendo 59 por roubo, e as demais por homicídio, latrocínio e receptação. Os ministros reconheceram que todas as acusações foram baseadas exclusivamente em reconhecimento fotográfico.
“Esse é o tipo do caso que demonstra a falência do nosso sistema processual penal. Não se trata de um caso isolado. Todos os dias nós estamos nos deparando com casos semelhantes. Talvez não com essa intensidade”, afirmou o ministro Sebastião Reis.
O porteiro trabalhava no condomínio em que vivia em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, e complementava renda com um lava jato no local. Em março de 2020, foi preso quando já havia sido reconhecido por foto em 62 ocorrências e acumulava dezenas de mandados de prisão contra si.
De acordo com relatório do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) sobre o caso, Paulo não foi ouvido em nenhum dos inquéritos que motivaram sua prisão. A apuração não apontava qualquer outra prova de envolvimento dele além do reconhecimento fotográfico feito pelas vítimas.
A entidade aponta ainda uma série de contradições nas acusações de que o porteiro foi alvo, entre elas os diferentes apelidos atribuídos ao acusado.
“A confusão entre as alcunhas feita pelas autoridades policiais, apesar da existência de indícios
que apontavam que estas alcunhas pertencem a pessoas diferentes, denota mais uma das falhas das
investigações”, afirma o relatório.
O relatório aponta ainda acusação por crimes ocorridos no mesmo horário em locais distantes até quatro quilômetros um do outro.
“Não houve investigação de autoria em nenhum dos inquéritos, nem mesmo a intimação de
Paulo para ser devidamente ouvido pela autoridade policial, oportunidade em que apresentaria a sua
versão dos fatos. Pelo contrário, identificou-se padrão que realça a completa negligência das
autoridades policiais nas investigações preliminares. O Ministério Público, por outro lado, em caso
algum requisitou novas diligências, no sentido de se obter apuração mais minuciosa”, afirma o IDDD.
Uma foto de Paulo obtida em redes sociais foi incluída num “álbum de suspeitos” da 54ª Delegacia de Polícia, em Belford Roxo. A investigação do IDDD não conseguiu identificar como a imagem foi parar lá. Uma das suspeitas é o fato de o condomínio em que o porteiro trabalhava e morava ter sido invadido por uma facção criminosa.
Ao longo desses três anos, Paulo acumulou 40 mandados de prisão contra si, dos quais 28 foram revogados. Das 62 ações penais, já foram 20 absolvições e 11 condenações, das quais 4 não caberiam mais recurso.
Uma das condenações foi levada ao STJ pelo IDDD e pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Os ministros decidiram absolver Paulo de uma acusação por roubo porque a única prova constante do processo é o reconhecimento da vítima.
O ministro Ricardo Schietti sugeriu, então, que a Corte revogasse todos os mandados de prisão preventiva e suspendesse todas as execuções de pena em curso contra Paulo até a avaliação dos casos tendo como base a premissa de que o reconhecimento da vítima não pode ser considerada a única prova.
“A impressão que se tem é que todos os roubos não apurados pela polícia de Belford Roxo foram atribuídos a este indivíduo. Estamos diante de um caso que me envergonha de integrar um sistema de Justiça de moer gente. Uma roda viva de crueldades”, afirmou o ministro.
“Estou convencido de que estamos diante de um erro judiciário gravíssimos, com consequências duradouras no tempo. Não é possível que ele aguarde por anos até que julgamos todos os habeas corpus”, disse Schietti.
A absolvição e a revogação da prisão foi aprovada por unanimidade na quarta-feira (10) pelos oito ministros da Terceira Seção do STJ. Paulo demorou mais dois dias para deixar a prisão.
“Estou muito feliz de estar perto da minha família, saber que vou ver meus filhos. Acabou aquele inferno lá dentro [da prisão]”, disse Paulo a jornalista ao deixar a prisão.
ITALO NOGUEIRA / Folhapress