SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Amazônia Legal, região mais carente de médicos do setor público no país, seguirá com déficit de profissionais mesmo com as quase 1.900 contratações previstas no edital do novo Mais Médicos, relançado pelo governo Lula neste ano.
Ainda que todas as vagas sejam preenchidas, a região chegará no máximo ao patamar de médicos do SUS (Sistema Único de Saúde) que o restante do Brasil registrava há 15 anos, considerando a taxa proporcional por habitantes.
Retomada do Mais Médicos prioriza Amazônia, com 1.869 vagas (um terço do total);
Mesmo com aporte, região mais carente enfrenta atraso de 15 anos em relação ao restante do país;
Disparidade vem aumentando; única exceção foi na primeira fase do programa, em 2013;
Oferta de profissionais quase dobrou no país, mas políticas falham em distribuição regional.
A disparidade entre Amazônia e outras regiões tem aumentado historicamente. Só diminuiu durante a primeira fase do Mais Médicos, promovido pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2013. Nos anos seguintes, com a desidratação do programa, a diferença voltou a aumentar.
Para equiparar a região proporcionalmente, seriam necessários mais 21 mil profissionais fixados na Amazônia, independentemente da fonte de contratações -não apenas por meio do Mais Médicos, mas também de políticas públicas mais amplas.
A análise da Folha de S.Paulo é baseada nos dados do CNES (Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde) e contempla apenas o universo de profissionais que atuam no SUS.
A Amazônia Legal (estados do Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão) registra muitos dos piores indicadores de saúde do país. Também abriga a maior parte da população indígena, que depende de assistência médica em áreas remotas e de difícil acesso. O setor foi diretamente impactado pela saída dos médicos cubanos durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
Com o novo Mais Médicos, a região pode ganhar um aditivo de até mil vagas, além das 869 de reposição previstas no edital. O total de 1.869 representa quase um terço dos postos de trabalho anunciados nesta etapa para todo o país (6.252) e se equipara ao número destinado ao Sudeste (1.848), que reúne o triplo da população.
Nas cidades que compõem a Amazônia Legal, a taxa atual de médicos por mil habitantes (1,02) é comparável à registrada no restante do Brasil em fevereiro de 2008. Fora da região, o índice geral subiu de 1,01 para 1,76 nos últimos 15 anos.
Em uma projeção máxima -se todas as vagas do novo Mais Médicos fossem preenchidas-, a oferta passaria dos atuais 29.084 profissionais (1,02 a cada mil habitantes) para um total de 30.953 na Amazônia (1,09). Nesse cenário, a região veria um aumento de 6,4% na taxa.
No restante do país, o impacto seria de 1,3%, passando dos atuais 325.038 profissionais (1,76 a cada mil habitantes) para 329.42 médicos atuando na rede pública (1,78).
Os dados mostram que as políticas públicas nos últimos anos falharam em diminuir a disparidade. Para isso, o aumento da oferta na Amazônia deveria acontecer em um ritmo muito superior ao do restante do país, ao contrário do que vem acontecendo.
O único período com inversão nesse movimento coincide com o intervalo entre o lançamento do programa Mais Médicos, em julho de 2013, e o fim da gestão do PT em 2016.
Em março deste ano, o programa tinha 8.366 vagas preenchidas -menos de metade das 18.240 atingidas na primeira fase. Outros 5.648 profissionais atuavam no Médicos Pelo Brasil, programa anunciado como substituto do Mais Médicos na gestão Bolsonaro.
Agora, o governo federal diz que a intenção é chegar a um total de 28 mil profissionais até o fim do ano. Serão mais 10 mil vagas oferecidas mediante contrapartida dos municípios e “presença principalmente em áreas de extrema pobreza”, com bolsas e outros benefícios para a atuação em periferias e regiões remotas.
A prioridade é para profissionais brasileiros. Em caso de vagas não preenchidas, poderão ser chamados brasileiros formados no exterior ou médicos estrangeiros.
Para Monica Andrade, coordenadora do Grupo de Estudos em Economia da Saúde e Criminalidade e professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), houve uma melhora significativa no número de médicos no país nos últimos anos, em boa parte graças aos programas de incentivo do governo em áreas mais vulneráveis.
Ela pondera, no entanto, que esse crescimento talvez esteja ainda refletindo as desigualdades que existem entre os sistemas público e privado.
“A taxa de crescimento de médicos no país aumentou cinco vezes mais do que o crescimento populacional. Enquanto nas últimas quatro décadas o aumento da população foi de cerca de 5% a cada cinco anos, os médicos aumentaram 25% no mesmo período. O problema é que o crescimento não acompanha as áreas mais necessitadas”, afirma.
No período com dados oficiais disponíveis, entre agosto de 2007 e março deste ano, o total de profissionais que atendem no SUS praticamente dobrou no país (96,6%), passando de 180.117 para 354.122. O aumento é um reflexo direto da abertura de cursos e vagas de graduação em medicina.
Como a população brasileira também cresceu no período, a taxa de médicos subiu 74,2% (de 0,95 para 1,66 a cada mil habitantes), considerando aqueles que trabalham no SUS.
“É claro que, olhando no final da década de 1980, quando tínhamos uma taxa abaixo de um médico por mil habitantes, os números melhoraram, o crescimento foi bom. Mas precisamos agora adequar para reduzir as desigualdades regionais”, explica Andrade.
Um ponto levantado por ela é a dificuldade que o médico recém-formado encontra em áreas mais distantes, onde provavelmente será o único ou um dos únicos profissionais da saúde responsáveis por um território inteiro.
“A questão de iniciativas como o Mais Médicos não passa só por abrir novas vagas, mas também formar esses médicos para que sejam atuantes em áreas com déficit e tenham políticas públicas para reduzir as desigualdades”, afirma.
Gabriela dos Santos Marques é médica de família e comunidade, atuante pelo programa Mais Médicos no município de São José, em Santa Catarina, e concorda com a visão de Andrade. Ela afirma, porém, que o déficit de profissionais ocorre não só nos municípios da regiões Norte, mas nesses locais, em geral, os chamados determinantes sociais em saúde são mais agudos.
“Existem áreas com déficit de atenção primária em todo o país, mas é claro que nos territórios indígenas, em regiões mais remotas, mais distantes das capitais, essa concentração de médicos é ainda menor.”
O próprio cálculo da taxa de médicos por população é contestado, pois ignora que, para ser atuante, a estratégia da saúde da família (ESF) precisa de uma equipe multidisciplinar.
“Discutimos na atenção primária um conceito chamado lei dos cuidados inversos. Nos locais onde as populações têm melhores condições socioeconômicas, o atendimento também é melhor, a população raramente falta ao seu exame agendado, existem remédios e tratamentos disponíveis. E justamente nas áreas onde é mais alta a demanda de saúde ocorre o esvaziamento dos recursos”, explica Marques.
Em cartilha publicada no lançamento do Mais Médicos em 2013, o governo dizia que “a Organização Mundial de Saúde não possui um parâmetro específico” e que o programa utilizaria como referência “a proporção encontrada no Reino Unido, pois, depois do Brasil, tem o maior sistema de saúde público de caráter universal orientado pela atenção básica.”
O indicador internacional mais recente da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) aponta que o Reino Unido tinha uma taxa de 3,2 médicos por mil habitantes em 2021, enquanto o Brasil registrava 2,1, incluindo os profissionais que atuam também na rede privada.
“Temos hoje um total de cerca de 15 mil médicos formados a cada ano, mas talvez junto a esse crescimento, com abertura de cursos na universidade, tenha sido negligenciado um fortalecimento e treinamento para que os recém-graduados atuem em locais mais necessitados”, pondera Andrade.
“Existem muitos mitos do programa Mais Médicos, e um deles é que o programa só fomenta a abertura de vagas de acordo com os municípios elencados, e não é bem isso. Há também uma contrapartida de formação para que os profissionais atuem com medicina da família”, diz Marques.
ANA BOTTALLO, CRISTIANO MARTINS E NICHOLAS PRETTO / Folhapress