SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O preconceito é um dos principais males sociais com os quais os quilombolas de todo o Brasil têm convivido. Por isso, a trajetória de Kunta Leonardo, 36, pode ser didática ao ir na direção oposta a muitos dos estereótipos que circundam as pessoas que nascem ou vivem nessas comunidades.
Graduado em dança pela Universidade Estadual do Paraná, ele se tornou bailarino profissional. Além de vários locais do Brasil, apresentou-se em países como Estados Unidos, Argentina e Paraguai.
Kunta Leonardo atuou com balé clássico na Companhia de Dança Masculina de Jair Moraes. Bailarino, coreógrafo e importante nome da dança brasileira, Moraes foi diretor do Balé Teatro Guaíra, uma das companhias públicas mais tradicionais do país. Morreu em 2016, aos 70 anos.
Depois de passar pela vertente mais clássica do balé, decidiu pesquisar danças afro, linha que tem seguido nos últimos anos, com apresentações solos, oficinas e a direção de espetáculos como o do Grupo Baquetá, em cartaz a partir deste mês de maio.
A construção de seu estilo de dança e de suas aulas nunca perdeu de vista a experiência adquirida durante o tempo em que morou no quilombo Invernada Paiol de Telha, localizado em Reserva do Iguaçú, no Paraná.
“Na comunidade a gente sempre dançou. Nas brincadeiras, na gestualidade, o fazer da coisa sempre estava presente para mim”, diz.
Segundo ele, a elaboração do seu solo de dança contemporânea “Entre Caboclos e Baianos” levou em consideração toda a estética e identidade relacionada ao trabalho rural quilombola.
“Eu trago elementos, como o chapéu, para a dança. O chapéu não é só um instrumento, é estético. Ele é também algo que nos protege do sol, que alivia do calor, que não queima a nossa pele durante o dia inteiro no trabalho”, conta o bailarino.
Desde pequeno, diz, achava lindo o trabalho na roça exercido pelos seus pais e pelas outras pessoas da comunidade. Por isso, alguns dos movimentos naturais da atividade são reproduzidos nas suas coreografias.
“Aqueles chapéus todos no campo […] Sem querer romantizar, porque o trabalho do campo é uma coisa de batalhação, mas achava aquilo muito lindo. Então essa ideia já estava presente na minha cabeça, desses gestos, desses movimentos.”
Além de desenvolver sua dança utilizando o gestual dos quilombolas durante o trabalho agrícola, Kunta Leonardo também pesquisa as relações entre danças contemporâneas e elementos presentes nas danças da diáspora negra. Nessa análise entram o samba, a capoeira e o maracatu, por exemplo.
Quando ele começou o contato com as comunidades de dança de cocos, entendeu a relação entre essa vertente de sapateado e outras danças negras que têm como pressuposto um pisar que é fruto de ações do cotidiano das comunidades negras rurais.
“Quando a gente está pensando, por exemplo, em torção, no corpo como uma poética de criação, a torção também está lá na dança de Ossain [orixá das folhas] que pega, torce e puxa. Então, eu vou encontrar os mesmos motivos de gestualidade nas danças dos Orixás e depois nas danças dos folguedos”, conta.
“São categorias de análise para o corpo ou para a formação do artista da dança. A hegemonia da dança tem elementos que, geralmente, não levam em conta as referências negras. E, para mim, é fundamental encontrar nas danças negras esses dispositivos também que são pressupostos para a dança acontecer. São os argumentos para o corpo se mover.”
A ligação entre dança e a sua comunidade quilombola, entretanto, não é apenas uma expressão artística surgida após se tornar um profissional. Essa conexão esteve no início e impulsionou Kunta para a vida de bailarino.
Durante uma feira escolar, ele foi convidado para ajudar sua irmã e alguns colegas em uma apresentação. Decidiram montar uma peça teatral com danças utilizando como referência orixás. Depois, ainda na comunidade, teve aulas de percussão. Passou a fazer pequenas apresentações em eventos na região.
Em 2019, o quilombo Invernada Paiol de Telha se tornou a primeira comunidade do Paraná a conseguir a titulação do território. Foram 50 anos de luta para os quilombolas conseguirem a posse sobre cerca de 1.200 hectares de terras em Reserva do Iguaçu, a 350 km de Curitiba.
A trajetória de Kunta, que deixou o chão batido no quilombo para dançar nos palcos da capital paranaense, chamou a atenção de um estudante da mesma universidade que o bailarino frequentou.
Nas mãos do cineasta Douglas Carvalho dos Santos, a história do dançarino quilombola virou o documentário “Upa, Neguinho”. O filme recebeu menção honrosa na edição de 2022 do Festival Internacional de Curitiba.
Segundo o cineasta, o objetivo do trabalho foi explicitar a dificuldade que pessoas negras têm para entrar nos meios acadêmicos e artísticos, dois espaços conquistados por Kunta.
“O documentário quer mostrar que, para além de toda a luta, nós também somos feitos de poesia”, diz Douglas Carvalho.
“O que me chamou a atenção nele foi perceber que a história do Kunta se fundia com a minha e, provavelmente, com a de outros tantos.”
Depois de virar um bailarino profissional, Kunta Leonardo teve a oportunidade de voltar à comunidade quilombola na qual passou a infância e fazer uma apresentação.
“Estavam os meus mais velhos. Eu dancei para outros mais velhos, de outros quilombos também. Foi emocionante. Vários reconheceram os gestos, as cantorias, as ladainhas, a poética”, lembra Kunta.
“Eles se reconheceram na minha dança.”
TAYGUARA RIBEIRO / Folhapress