O STF (Supremo Tribunal Federal) deve retomar no segundo semestre o julgamento de uma ação central para o processo de demarcação de terras indígenas no país, mas, seja qual for o veredito, a controvérsia estará longe de terminar.
No caso específico que está na corte, os ministros analisam uma disputa em torno da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, em Santa Catarina, onde se encontra o povo xokleng. Como pano de fundo, eles decidirão sobre o alcance do chamado marco temporal.
A tese apareceu no julgamento da terra Raposa-Serra do Sol (Roraima), encerrado em 2009. De acordo com ela, os povos indígenas só teriam direito a territórios que estivessem ocupando na data em que a Constituição foi promulgada: 5 de outubro de 1988.
Em 2013, ao esclarecer a decisão de 2009, o STF explicou que o marco temporal tinha sido utilizado de maneira pontual; ou seja, aplica-se à Raposa-Serra do Sol, mas isso não significa que possa ser replicado país afora. Só que também não significa que não possa.
O que o STF se propõe a fazer no caso de Ibirama-Laklanõ é resolver essa pendência, que pode ser resumida em uma questão: afinal, o marco temporal vale para a demarcação de todas as terras indígenas no Brasil ou foi uma tese de uso exclusivo para a Raposa-Serra do Sol?
Relator do atual processo, o ministro Edson Fachin votou, em setembro de 2021, contra o marco temporal. Ele argumentou que a tese contraria a Constituição e viola direitos fundamentais dos povos indígenas.
Pelo artigo 231 da Constituição, os povos indígenas têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”; e as terras tradicionalmente ocupadas por eles “destinam-se a sua posse permanente”. Não há referência a nenhuma data.
O segundo ministro a votar foi Kassio Nunes Marques, que discordou de Fachin. Para ele, a inexistência de um prazo para demarcação de terras indígenas gera insegurança e abre espaço para conflitos.
Ainda em setembro de 2021, Alexandre de Moraes pediu vista (mais tempo para analisar o processo). Na última quarta-feira (7), a corte retomou a discussão do caso, e o ministro votou contra a tese do marco temporal.
André Mendonça, então, pediu vista e suspendeu o julgamento. Ele tem 90 dias para devolver a ação para análise da corte, segundo as normas internas do Supremo. Esse prazo, porém, pode ser maior devido ao recesso do Judiciário, em julho.
A resposta dos ministros, contudo, não representará um ponto final nessa história. No mínimo porque acaba de ser aprovado na Câmara -e seguiu para o Senado–um projeto de lei sobre o mesmo tema, e nada impede que os parlamentares continuem o processo legislativo independentemente do que acontecer no STF.
“Não existe no direito brasileiro controle de constitucionalidade de lei ainda em discussão no Parlamento. Seja qual for a decisão do STF, os parlamentares podem legislar em sentido contrário”, diz Thomas Bustamante, professor de teoria do direito na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Se isso ocorrer, por sua vez, nada impede que a nova lei venha a ser discutida no Supremo. E, nessa hipótese, o julgamento futuro sofreria a influência da decisão que a corte tomar no caso de Ibirama-Laklanõ.
“Por exemplo, se o Supremo negar a tese do marco temporal e, depois, o Congresso aprovar uma lei que estabeleça o marco temporal, essa lei será válida, mas poderá ser questionada. Será uma lei vulnerável, como se já contivesse em si o germe da alegação de inconstitucionalidade”, diz Bustamante.
Se o STF disser que o marco temporal valeu só para Raposa-Serra do Sol, o cenário hipotético tem tudo para virar realidade. O deputado Arthur Maia (DEM-BA), relator do projeto na Câmara, já disse que a decisão do Judiciário não impedirá a aprovação do tema no Congresso.
Em sentido contrário, a disputa também deve continuar se o STF reconhecer a validade geral do marco temporal.
“Uma coisa é certa: nem o STF nem a Constituição admitem que exista indígena sem terra”, afirma Juliana de Paula Batista, advogada do ISA (Instituto Socioambiental). “O direito territorial dos povos indígenas terá de ser viabilizado de alguma forma”, diz.
Para ela, mesmo que o STF seja a favor do marco temporal, será preciso criar balizas. “Se o que for valer é onde os indígenas estavam em 5 de outubro de 1988, vão abrir investigações para localizar esses lugares?”, questiona a advogada.
Dado que a discussão no Supremo já se arrasta há alguns anos e não é certo que terminará em breve, é preciso considerar ainda outra hipótese: e se o Congresso aprovar seu projeto de lei, e o presidente da República sancioná-lo, antes de o julgamento ser finalizado?
“Vai um recado direto e reto para o STF sobre o entendimento dos Poderes Executivo e Legislativo”, afirma Miguel Gualano de Godoy, professor de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
“Cria, assim, um ônus maior para o STF decidir contra o marco temporal. Não impede, no entanto, que o STF julgue o caso e decida contra o marco temporal”, diz Godoy.
Para alguns parlamentares, esse impasse entre o STF e o Congresso, com a retomada do julgamento em meio à tramitação do projeto de lei, sinaliza uma invasão de competência do Legislativo. Segundo essa visão, a iniciativa da Câmara deveria travar a discussão no Judiciário.
“Esse não é um argumento jurídico válido, ele é meramente político”, diz Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador dos Núcleos da Memória e de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.
“O Supremo não pode deixar de aplicar a lei quando provocado. E ele foi provocado por quem entrou com o recurso. Portanto, ele não está atuando voluntariamente; ele está respeitando sua competência”, diz Pereira.
UIRÁ MACHADO / Folhapress