SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O recente retorno da Síria à Liga Árabe foi recebido com surpresa e indignação na região. O ditador Bashar al-Assad havia sido suspenso da entidade em 2011 devido à violência com que respondeu à guerra civil no país. Centenas de milhares morreram, milhões tiveram de deixar seus lares e cidades foram destruídas.
Mas a nação que volta à liga é um outro lugar. O conflito a transformou no que especialistas já chamam de “narcoestado”, uma mudança que ajuda a explicar a disposição dos países árabes em reabrigá-la.
A Síria produz e contrabandeia a droga captagon, tipo de anfetamina ilegal que causa dependência. Um estudo recente publicado pelo instituto de pesquisa Newlines afirma que ao menos 370 milhões de pílulas foram apreendidas em 2022 no Mediterrâneo e no Golfo. É apenas uma fração do volume em circulação.
A região está em alerta. A Arábia Saudita, onde jovens e trabalhadores imigrantes abusam da droga, já trata o captagon como um problema de saúde pública. O preço -cerca de R$ 5 por um comprimido de baixa qualidade- é um agravante. Querem, por isso, convencer Assad a controlar esse mercado ilegal.
O captagon surgiu como um tratamento para o transtorno de déficit de atenção e a narcolepsia. Os comprimidos tinham a estampa de dois crescentes lunares, daí o apelido em árabe, “abu hilalain”, que pode ser traduzido como “aquela que tem duas luas”. Quando, no fim dos anos 1980, soube-se que criava dependência, foi proibido em todo o mundo. Foi retomado nos últimos anos, com impulso da Síria.
O regime não admite a participação no contrabando, apesar de apurações internacionais tratarem como fato. Pesquisadores que identificaram locais de produção da droga e as rotas de tráfico responsabilizam funcionários públicos e nomes próximos a Assad, como seu irmão caçula, Maher, figura poderosa no país.
Não está claro o quanto o ditador sabe. Mas ele tem agora nas mãos uma maneira eficiente de forçar os demais países árabes a voltar à mesa de diálogo. Um dos temas centrais da retomada das relações com a Liga Árabe foi justamente a expectativa de que a Síria desmonte a rede de contrabando dessa droga.
“Detrás dos panos, a Síria reconhece seu envolvimento e o usa como uma cartada”, diz Caroline Rose, do Newlines, que pesquisa o assunto. “A Síria quer concessões imediatas, como o alívio das sanções econômicas e a retomada de investimentos e enxerga no captagon a maneira mais rápida para obter isso.”
O desafio é cumprir a promessa. “Há um histórico de apreensões cosméticas e de manipulação de dados”, afirma Rose. Em outras palavras, Assad tem feito gestos simbólicos sem se comprometer de fato.
A indústria do captagon -fomentada de início para compensar as perdas da guerra- movimenta bilhões de dólares. Segundo um levantamento do New York Times, é seu principal produto de exportação.
“Alguns países estão oferecendo incentivos econômicos para compensar a Síria pelo que ganharia com o captagon”, diz Rose. “Não acho que vá funcionar. O regime vai pegar o dinheiro, continuar com seu envolvimento no tráfico e, depois, dizer que fez o que era possível.” Uma solução para os descontentes no Golfo seria diminuir o ritmo de sua normalização diplomática com a Síria. Outra saída é tratar o captagon como uma crise regional e, nesse sentido, incrementar suas redes de cooperação e apreensão.
Como a droga já está sendo apreendida também na Europa, aliás, esse não é um problema só do mundo de fala árabe. Legisladores americanos têm pedido que o país desenhe uma estratégia para lidar com o tráfico de captagon e começaram a impor sanções a pessoas ligadas ao contrabando na Síria e no Líbano.
A tarefa é complicada, em parte pelo fato de que há diversos atores envolvidos no contrabando, alguns dos quais violentos. São grandes fabricantes no interior sírio, por exemplo, somados a milícias como o grupo libanês Hizbullah e traficantes em zonas fronteiriças com o Iraque.
Do ponto de vista da saúde pública, Rose menciona o desafio de lidar com uma droga cuja fórmula não é totalmente conhecida. “Ela muda o tempo todo, e não sabemos de maneira consistente o que está nas pílulas”, diz ela. Além de metanfetamina, costuma haver cafeína e outras substâncias, para criar volume.
Apesar de movimentar bilhões de dólares e dar vantagens diplomáticas para a Síria, o captagon não resolve o problema central do colapso de sua economia. “Não sabemos se o dinheiro está sendo investido ou embolsado”, diz Rose. “Provavelmente, acaba nas mãos das milícias e dos empresários que sustentam o regime. Se chegasse ao setor público, nós teríamos visto uma melhora na economia da Síria.”
DIOGO BERCITO / Folhapress