RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – No Rio de Janeiro, 1 em cada 4 ocorrências de furtos de alimentos, bebidas ou itens de higiene pessoal na pandemia de Covid envolveu valores de até R$ 110. Esses são delitos que podem ser considerados, segundo a Defensoria Pública do Estado, para suprir necessidades básicas em situações de vulnerabilidade por seu valor irrisório e menor capacidade ofensiva. É o que o órgão aponta em um relatório sobre o princípio da insignificância, divulgado nesta quinta (1º).
O princípio da insignificância ou da bagatela é um entendimento jurídico considerado em casos em que um delito é cometido para fins de subsistência -por exemplo, quando um morador de rua furta comida no supermercado para se alimentar. Não há, porém, um critério definitivo para enquadrar o que entra nesse entendimento, cabendo a cada juiz reconhecer o princípio ou não.
A Defensoria avaliou todas as ocorrências de furto registradas no estado do Rio de Janeiro entre janeiro de 2020 e junho de 2021, período mais latente da pandemia. O objetivo foi analisar os casos em que o delito poderia ser enquadrado no princípio da insignificância.
“O princípio da insignificância é instrumento de justiça”, afirma Isabel Schprejer, subcoordenadora de Defesa Criminal da Defensoria. “Evita a punição de condutas que possuem mínima lesividade e relevância, principalmente pequenos furtos de itens de alimentação e higiene voltados à subsistência de famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar, agravadas pela pandemia.”
Ao todo, foram 4.175 ocorrências de furto que se tornaram inquéritos judiciais. Deste número, 943 foram casos em que uma pessoa pegou itens alimentícios e de higiene básica sem pagar. Representando cerca de 22,6% de todas as ocorrências, esse foi o segundo tipo de furto mais comum no estado, atrás apenas do de metais, que abrange, por exemplo, cabos de energia, fios de cobre e placas de ferro (24%).
Dos 943 casos de furto de artigos de primeira necessidade examinados, quase metade, 43%, eram itens com preços equivalentes a até 20% do salário mínimo -R$ 220, segundo valores da época. Deles, 241 são casos em que o valor dos produtos era ainda menor, até R$ 110 -ou 10% do salário mínimo de 2021.
De acordo com a coordenadora do núcleo de Defesa Criminal da Defensoria, Lucia Helena Oliveira, a falta de definição legal do princípio da insignificância abre margem para decisões judiciais divergentes em casos semelhantes.
“Em termos práticos, ainda encontramos muitas dificuldades para que haja o reconhecimento do princípio da insignificância, ainda que estejamos diante de produtos de necessidade básica. Precisamos que haja uma mudança legislativa para que este princípio possa estar expressamente previsto em nossa lei penal, evitando, deste modo, a insegurança jurídica, em razão de decisões jurídicas diferenciadas”, diz.
Quase dois anos após o período analisado pela Defensoria, 42% dos furtos de itens de primeira necessidade ainda não têm uma decisão final da Justiça, estando na fase de inquérito; de oferecimento/recebimento da denúncia; de oferecimento/homologação do acordo de não persecução penal; ou de realização da audiência de instrução e julgamento.
Já em relação aos casos que avançaram no processo judicial, 118 deles, 55%, tiveram o reconhecimento do princípio da insignificância. O que significa que as pessoas que cometeram o delito não foram condenadas, seja porque o processo foi extinto ou por ter sido inocentado pelo juiz.
No entanto, em 38 ocorrências, os réus foram condenados. É o caso, citado pela Defensoria no relatório, da pessoa que foi condenada por ter furtado itens no valor de R$ 83,40.
Na decisão, o juiz afirmou que “a quantia não pode ser considerada ínfima, apta a gerar a aplicação do referido princípio, principalmente em um país onde milhares de pessoas sobrevivem com menos de R$ 100 recebidos a título de benefícios sociais”. O réu neste caso não tinha antecedentes criminais, o que é visto com um dos poucos critérios para considerar o princípio da insignificância.
A pena para esses condenados variou de 6 meses a 3 anos e meio. A Defensoria preferiu não identificar nenhuma das partes no relatório, seja quem cometeu o delito ou o magistrado que o julgou.
Em um dos casos de condenação citado pela Defensoria no relatório, o juiz decidiu condenar uma pessoa que tinha furtado R$ 173,34 em caixas de bombom. Ele está entre os casos em que os furtos de itens de necessidade imediata variava entre R$ 110 e R$ 220 (159 ocorrências), dos quais apenas 60 já chegaram a uma decisão final na Justiça. Desta vez, a maioria, 34, levaram à condenação dos réus, cujas penas foram de 4 meses a 6 anos. O princípio da insignificância foi reconhecido em 22 casos.
CAMILA ZARUR / Folhapress