Caetano Veloso canta por um Brasil que não tem mais tempo

O cantor e compositor Caetano Veloso está na estrada com a turnê “Meu Coco”. Foto: Divulgação

Estadão Conteúdo

Por Julio Maria

Caetano Veloso passou com a turnê de Meu Coco, seu mais recente álbum, neste final de semana, na gigante Espaço das Américas, em São Paulo. Em três meses esse homem terá 80 anos, dia 7 de agosto, e fica natural vê-lo agora muito fortemente sob o prisma do tempo e lembrar de seu acordo com “um dos deuses mais lindos” feito em 1979 em Oração ao Tempo, quando pediu ao “compositor de destinos” e “tambor de todos os ritmos” que seu espírito ganhasse um “brilho definido” e “espalhasse benefícios”. Oração ao Tempo é a melhor música que Caetano Veloso não cantou em seu show, mas que soou o tempo todo, do início ao fim, “num outro nível de vínculo”.

Há um certo espírito de saudosismo no ar, com histórias de canções e bandas que o acompanharam em outros tempos, e com músicos do passado nomeados um a um por Caetano, mas também um roteiro pensado talvez não para o ordenamento de um repasse de vida com seus feitos e condecorações mas como reflexo dos choques do mundo e das paixões que tornaram sua obra um inesgotável contraditório de doçura, tensão, crença, perturbação, leveza, densidade, partidarismo, ceticismo, Bahia, Rio e São Paulo.

Oitenta anos dá tempo de ver muita coisa e Caetano, mais do que qualquer outro compositor de seu estágio, se colocou atento e forte a todas elas sempre que se sentou para pensar o redor. Vê-lo em um palco com um álbum novo e conectado como Meu Coco é enxergá-lo não na frieza de uma cronologia biográfica, que será sempre passado, mas no calor do ato presente de sua existência.

Está lá, mais no todo do que nos detalhes – mas o show também é cheio deles, os detalhes. Um cenário mínimo e forte, uma luz pouca e atenta, um figurino honesto não com o que Caetano foi, mas com o que se tornou, transferindo suas transgressões paulatinamente do corpo para o pensamento, ao contrário de Ney, e uma regulagem de som precisa com a sessão rítmica dos três percussionistas isolada por um biombo transparente para evitar vazamentos e atropelos.

A casa é grande demais para ter um som irretocável, mas os técnicos venceram. E a banda, com o jovem produtor Lucas Nunes na guitarra, violão e teclados – um garoto que cresceu na casa de Caetano, amigo de seus filhos – mais Pretinho da Serrinha em uma das percussões, cria um novo tecido sonoro para substituir a outra turnê, Abraçaço, de 2013. Antes eram as guitarras e o ácido do rock and roll. Agora é a força de um estrondoso ritmo terreno.

Há uma outra visão para além de cada canção, por entre elas. A abertura improvável e doce com Avarandado, de 1967, por exemplo, de um tempo de se namorar recostado na palmeira da estrada cantada por Gal Costa, entra em choque segundos depois com a complexidade do que tudo se tornou, um país de “católicos de axé e neopentecostais”, uma “nação grande demais para que alguém engula”, exposta no álbum de 2021.

Assim como a próxima, Anjos Tronchos, do mesmo 2021, que reflete a angústia dos criadores da era do Spotify ao dizer que “agora a minha história é um denso algoritmo”, não caberia em Sampa, quando as agonias “do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas” pertenciam só ao mundo exterior e palpável, o único mundo que existia.

Enzo Gabriel, uma angústia antiga, pergunta aos recém nascidos, usando o nome que mais batizou meninos em 2019, “qual será o teu papel?”, e os alerta inconsolavelmente de que já já verão o que é nascer no Brasil. E isso tudo antes de O Leãozinho, uma canção que Caetano jamais faria nos dias de hoje.

Outros diálogos temporais podem ser entendidos nos vãos de Trilhos Urbanos, Ciclâmen do Líbano, A Bossa Nova É Foda, Baby, Não Vou Deixar, Araçá Azul, Odara, Sem Samba Não Dá, Lua de São Jorge e Mansidão. São muitos Caetanos, incluindo o exilado pelo regime militar nos anos de ditadura, quando ele se lembra detalhadamente dos 50 anos do álbum Transa, de 1972, gravado em Londres. Caetano fala com a ligeira alteração que sempre lhe possui quando se lembra do assunto e toca, de Transa, You Don’t Know Me.

Ele diz claramente e por mais de uma vez seu “fora Bolsonaro” e é sempre seguido pela plateia. Em uma das vezes, vai além e emenda um “Lula lá!” para também ganhar apoio de uma maioria bastante ruidosa. O tomar partido sobre um palco com veemência o distancia dos outros artistas de sua classe, o conecta com o mesmo homem do início de tudo e soa como um sufixo de sua oração de 23 anos atrás. Caetano chega aos 80 sabendo que o tempo do seu Brasil está acabando.

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