SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que parece ser mais um dia comum no consultório de uma psicanalista é interrompido pela chegada de um homem que, aflitíssimo, hesita em dizer o que o levou a buscar ajuda. Após muita insistência da profissional, Arnaldo, interpretado por Otávio Muller, desabafa: “é que eu me chateio, doutora. Eu me chateio muito, o tempo todo!”.
O que em um primeiro momento poderia parecer uma sensação passageira, o sintoma revela ser mais grave que o esperado: Arnaldo prova de um desinteresse absoluto por tudo e todos, o tempo todo. Ou, como ele próprio lamenta à psiquiatra, vivida por Letícia Isnard: “a pessoa que se chateia não tem noção de tempo”. Os diálogos frenéticos e cômicos entre os dois provocam a reflexão sobre a incapacidade de concentração na era digital da dopamina a qualquer momento -em que, com estímulos constantes, nada parece verdadeiramente estimulante.
“O Caso”, em cartaz no Teatro Bravos, é do dramaturgo Jacques Mougenot, o mesmo de “O Escândalo de Philippe Dussaert” -monólogo sobre o artista que copiava grandes obras, levado aos palcos brasileiros por Marcos Caruso em 2018. O texto da nova peça, originalmente em francês, precisou passar por adaptações para que pudesse dialogar com o público brasileiro. “Tinha uma coisa meio verborrágica, de falar sem parar. Nós demos uma enxugada para abrir espaço a momentos de climatização”, explica Letícia Isnard.
“Alguns psicólogos que vieram nos assistir falaram que a peça parece a sinopse de uma sessão psicanalítica”, comenta Isnard, referindo-se ao período em que “O Caso” ficou em cartaz no Rio de Janeiro. Andar em círculos pelo nervosismo, não conseguir sair do lugar e evitar a qualquer custo assuntos sensíveis são comportamentos frequentes durante o processo analítico -todos eles repetidos pelo paciente em cena.
Além dos diálogos, grande parte do humor está na própria situação em que as personagens se encontram -e na dramaticidade com a qual lidam com o problema, que beira ao absurdo. “O senhor tem uma ideia fixa. É obcecado pelo tédio!” arrisca a doutora, frustrada ao perceber que seu paciente está entediado com a própria consulta -e não consegue sequer se interessar por um diagnóstico. Ela, então, apela a técnica do magnetismo -teoria de sucesso no século 19, que defendia uma suposta força natural e invisível dos seres vivos- e convence Arnaldo a tentar mover uma colher com o poder da mente.
Em determinado momento, então, Arnaldo revela ser roteirista. A psiquiatra, fascinada pelo ofício, fica ainda mais perturbada: não consegue entender como uma pessoa que trabalha com criatividade pode ser tão entediada com absolutamente tudo ao seu redor. “Histórias são coisas que acontecem com as pessoas. Muda uma coisa aqui e outra ali, mas são sempre as mesmas”, responde ele, sem muita comoção, e conclui: “é melhor se chatear trabalhando do que sem fazer nada, pelo menos recebo alguma coisa!”.
Com a rapidez inerente ao próprio diálogo, quando nos damos conta, ela está sentada no divã enquanto ouve, totalmente absorta, sobre as ficções escritas pelo seu paciente. “O exercício da psicanálise também é o exercício da escuta. Então muitas vezes o psicanalista precisa trocar de lugar. Parece uma dança das cadeiras”, comenta o diretor Fernando Philbert.
“Fica engraçado por identificação”, comenta Otávio Muller. Afinal, quem nunca fingiu prestar atenção em uma conversa apesar de entediado, ou até mesmo atendeu a um telefonema fictício para se livrar de uma situação social aborrecedora? Todas técnicas que Arnaldo confessa à terapeuta, em um espaço de aliviante sinceridade, onde ele não mais precisa disfarçar seu tédio para garantir uma conduta social adequada.
Ou, ainda, quem nunca sentiu, em determinado momento da vida, incômodo com a mesmice da rotina? “Tem essa dimensão da falta de sentido na existência”, reflete Muller. A ficção, então, torna-se uma ferramenta poderosa para lidar com a realidade.
“O senhor padece da falta da falta”, arrisca, antes de ser surpreendida novamente, a médica. E conclui, por um breve momento: “O ser humano é um fugitivo do tédio, porque cada segundo de tédio nos aproxima da morte. O medo de se chatear é o medo de morrer”.
O CASO
Quando: Sáb., às 20h; dom., às 17h. Até 9 de julho
Onde: Teatro Bravos – r. Coropé, 88, São Paulo
Preço R$ 40 a R$ 120
Classificação: 12 anos
Elenco: Otávio Muller e Letícia Isnard
Direção: Fernando Philbert
Link: https://bileto.sympla.com.br/event/82142
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress