CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Enquanto estrelas desfilam pelo tapete vermelho e cinéfilos se acotovelam para entrar nas salas, existe em Cannes todo um ecossistema à parte, nos subterrâneos do Palácio de Festivais, nas tendas às quais se chega pelas portas do fundo e em escritórios espalhados pela cidade.
Mais low profile, esse lado é o que realmente movimenta o evento, com um número enorme de membros da indústria que estão ali para negociar. Parte deste setor, a Vila Internacional é um compilado de estandes alugados por governos e instituições que queiram falar de sua produção e promover pequenos eventos, e no qual a tenda da Arábia Saudita chama a atenção.
Em local privilegiado, ela tem o tamanho de um apartamento de alto padrão, com pelo menos o dobro dos 50 metros quadrados alugados pelas cerca de 80 nações presentes ali. Essa metragem modelo custa de R$ 90 mil a R$ 100 mil, de acordo com o Mercado do Filme, coordenador dessa parte do festival, o que multiplica, e muito, a conta dos sauditas.
É o mesmo espaço ocupado no ano passado, fruto de uma colaboração entre o Centro Rei Abdulaziz de Cultura Global, que se descreve como um “farol para a mudança na Arábia Saudita” ao apoiar iniciativas de arte e cultura, as produtoras Ithra e MBC e a associação AlUla, agência que tenta atrair produções nacionais e estrangeiras para o país.
Curiosamente, essa ostentação esconde o fato de que até 2017 a Arábia Saudita não tinha salas de cinema. Elas estavam proibidas há 35 anos pelo governo, que naquele ano promoveu uma virada nos costumes com um pacote que liberava ainda shows musicais e mulheres no volante. Agora, a bilheteria saudita está entre as que mais crescem no mundo.
Essa mudança foi a semente para que uma geração de cineastas florescesse no país, ancorada, justamente, em incentivos públicos, como destacou Majed Z. Samma, diretor do departamento cinematográfico da Ithra, num dos vários eventos promovidos pelo pavilhão saudita para cineastas, produtores, investidores e jornalistas.
“Nós não queremos que roteiros sauditas sejam criados e depois dados para diretores estrangeiros. Queremos criar um cinema autenticamente saudita, com sabor local, mas que tenha alcance internacional”, afirmou após a exibição de trailers de produções que serão lançadas em breve com financiamento da agência. Tudo graças ao que descreveu com um boom à base de esteróides na indústria local.
Braço do Centro Rei Abdulaziz de Cultura Global, a Ithra foi inaugurada pelo rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, que desde 2015 está no trono tentando modernizar a Arábia Saudita, e pela Saudi Aramco, empresa pública de petróleo e gás natural, uma das responsáveis pela ostentação financeira vista na região nos últimos anos.
Assim, a extração de petróleo é o que vem bancando a primavera cinematográfica vista no país, salientando as contradições de um governo que tenta se mostrar progressista internacionalmente, mas que ainda é regido pela sharia, conjunto de leis islâmicas que ajuda a justificar violações de direitos humanos.
A homossexualidade, por exemplo, é proibida e pode render multa, prisão ou pena de morte. O órgão que regula o turismo por ali, no entanto, insiste que visitantes LGBTQIA+ são bem-vindos.
Por meio de incongruências como essas, a Arábia Saudita, numa estratégia de soft power, tenta se apresentar a Cannes como um país que quer, além de investir na própria indústria, atrair cineastas e produções estrangeiras para gravarem ali por meio de incentivos fiscais.
Seu estande está repleto de fotos de paisagens que podem fazer as vezes de cenários para filmes e séries, e de panfletos como os do Neom Media Village, enorme complexo audiovisual com infraestrutura de ponta. Tecnologia e mão de obra capacitada, argumentam, têm sido prioridade dos órgãos ligados ao audiovisual.
Ao longo do Festival de Cannes, três revistas circulam diariamente com as principais notícias do evento, além de críticas e programação. Os sauditas compraram anúncios de capa e de página inteira em todas elas, numa demonstração de poder financeiro.
“É um ótimo momento para ser um cineasta saudita, porque há muito acontecendo. Eu não vou entrar em política, só dizer que somos justos e queremos apoiar qualquer bom projeto que chegue para nós. É a era do ouro para a nossa indústria cinematográfica”, disse Fatima AlBabtain, diretora de audiovisual do fundo de financiamento cultural da Arábia Saudita, num dos evento em Cannes, que teve o cuidado de pôr quatro palestrantes mulheres ao lado de um único homem.
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress