Como ‘Tom na Fazenda’ se tornou um fenômeno e um marco do teatro brasileiro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Num dia de primavera em Paris, a agente de teatro Séverine André Liebaut foi até uma loja de moda brasileira para dar à sua filha um vestido novo de presente. Chegando lá, disse ao atendente que estava trabalhando com atores do Brasil. “É do ‘Tom na Fazenda’? Estou tentando comprar os ingressos, mas já está tudo esgotado”, respondeu o funcionário.

Há seis anos em cartaz, a peça, agora no Teatro Vivo em São Paulo, causou furor no “grand monde” parisiense ao cumprir uma temporada de quatro semanas no Théâtre Paris-Villette em março passado. “O que está acontecendo com essa produção é uma raridade. A língua portuguesa não foi uma barreira diante da força da encenação e reuniu na plateia leitores do jornal Le Monde e jovens intelectualizados da comunidade LGBTQIA+”, afirma Liebaut, que representa a montagem nos teatros da Europa.

“Tom na Fazenda” é uma peça escrita em 2009 pelo canadense Michel Marc Bouchard, que ganhou os palcos do Québec dois anos depois. O diretor Xavier Dolan, seu conterrâneo, adaptou o texto para o cinema em 2013, tornando a história ainda mais conhecida. Depois, o ator Armando Babaioff se encantou pelo filme e decidiu fazer uma adaptação teatral para o português.

Após a morte do namorado, o publicitário Tom, papel de Babaioff, vai até a fazenda onde mora a família para acompanhar o funeral. Lá, descobre que Ágata, sogra vivida por Soraya Ravenle, nunca tinha ouvido falar dele e tampouco sabia ter um filho gay.

Seu outro filho, Francis, encarnado por Gustavo Rodrigues, passa a oprimir Tom, que esconde da sogra o passado do relacionamento homoafetivo. Num ambiente de opressão, Tom se envolve numa rede de mentiras, interditando a história de amor. Em dado momento, chega até a apresentar à família uma namorada falsa do filho morto, vivida por Camila Nhary, na tentativa de cumprir as expectativas de sua sogra.

Em qualquer parte do mundo, as plateias ouvem os diálogos em português, lendo as legendas nos respectivos idiomas locais. O cenário é despojado de adornos. A limpeza do fundo contrasta com o palco sujo, todo coberto de lama, que também cobre a roupa e o corpo dos atores. A ruralidade se estenderia, então, à mente dos personagens, cada um deles tendo o cotidiano marcado pela violência de um modo específico.

O luto se manifesta em um não lugar: na ausência de uma paisagem descritiva a peça poderia se passar numa pequena cidade do Canadá ou no interior do Brasil, como indicado pela adaptação de Babaioff.

A melancolia da interdição do amor se funde à tristeza do desaparecimento. Babaioff inclui no texto a imagem de uma salada de macarrão fria, servida a todos os visitantes da fazenda. A palidez do prato, a temperatura baixa e o gosto anódino sintetizam o sentimento desolado que perpassa a mente de todos os personagens.

“A versão brasileira é a melhor de todas porque principalmente evita as pegadinhas do naturalismo. O brilhante diretor Portella foi quem decidiu que o palco ficaria todo nu e que seria habitado somente pela presença dos atores e de matérias, como a água e a lama. Quando eu assisti à peça pela primeira vez no Rio, em 2016, vivi uma forma de eucaristia entre a produção e o texto”, escreve Bouchard, numa entrevista por email.

Ao todo, 45 mil pessoas já assistiram à peça que em junho completa 300 apresentações. O fenômeno no exterior se iniciou em 2018 no Festival TransAmériques, o FTA, em Montreal, no Canadá. No ano passado, a produção participou do circuito off do Festival de Avignon, na França, um dos mais importantes do mundo.

Foram três semanas com uma sessão diária sempre lotada. Os funcionários do teatro ainda buscavam mais dez cadeiras para acomodar as pessoas. No fim, “Tom na Fazenda” foi uma das sensações daquela edição do festival, que apresentou 1.700 espetáculos. Para o ano que vem, já está confirmada uma turnê que passará por França, Bélgica, Suíça e Portugal.

Ao mesmo tempo, a obra se espalhou pelo Brasil desde o primeiro ano em que foi montada, em 2017. “Tom na Fazenda” já esteve em cidades como Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Garanhuns, Recife e, na semana passada, em Ribeirão Preto, uma encenação simbólica feita no paraíso do agronegócio.

“Na Europa, o debate sobre a homofobia já está em outro lugar. Já numa cidade como Ribeirão Preto, as falas homofóbicas estão muito presentes no cotidiano daquelas pessoas. A plateia reconhecia o Francis, aquele opressor, que vive dentro de suas casas”, diz Babaioff.

Mesmo com o sucesso, o maior entrave ainda é a falta de financiamento. Salvo no início da produção, ainda no Teatro Oi Futuro, no Rio de Janeiro, Babaioff tem bancado, ele próprio, a continuidade da peça. Num ato de coragem, investiu todas as economias ao levar a obra para o circuito off do Festival de Avignon.

“Foi uma decisão estratégica, agora o meu investimento tem retornado. Tenho questionado a indústria do audiovisual como um todo e comecei a me sentir deslocado nela. Não quero trabalhar para vender perfume em comercial e postar foto no Instagram para dar engajamento e like”, diz.

Ele conta que consegue mostrar um comportamento diferente daquele esperado pelo público, acostumado com a representação do galã de novelas. Do mesmo modo, diz provocar as sensibilidades do homem moderno. “Uma vez uma moça chegou para mim no fim da peça e disse que o marido estava com tesão em mim, mesmo não sendo gay. Provocar esse tipo de questionamento é muito interessante”, ele afirma.

Babaioff já se sente cansado de reclamar da falta de apoio e de patrocínios no Brasil. “Acho surreal uma obra que marca a história do teatro brasileiro não ter patrocínios, consigo encenar a peça no Teatro Nacional de Bruxelas, mas não posso fazer uma temporada popular no Rio de Janeiro”, diz ele.

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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