CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Em meados do século 19, quando boa parte dos Estados europeus já tinham abraçado o racionalismo das revoluções burguesas, a península itálica ainda estava mergulhada em obscurantismo, regida pelo papado e pelo direito canônico. Às margens, monarquistas liberais, maçons, industriais, nacionalistas e comunistas tentavam esticar a corda.
O caldeirão ideológico do risorgimento, como é conhecido o processo que culminou na unificação da Itália, é um ambiente em que o diretor Marco Bellocchio se sente bem à vontade –seus filmes são grandes crônicas sobre as forças políticas de seu país. Em “Rapito”, que disputa a Palma de Ouro no Festival Cannes, ele tem a oportunidade de mergulhar na gênese de seu país.
Para isso, o cineasta toma como ponto de partida uma história verídica e insólita. Na década de 1850, as autoridades episcopais da cidade de Bolonha arrancaram o menino Edgardo Mortara, de seis anos, das mãos de seus pais, um casal de judeus, o batizaram à força e o levaram a ser adotado pelo próprio papa Pio 9º. O caso teve enorme repercussão e acirrou os ânimos antieclesiásticos do movimento nacionalista.
Bellocchio narra o desenrolar dessa história com ares de thriller político, mas sem abrir mão do núcleo sentimental do drama de uma família que precisa reaver um garoto raptado –o “rapito” do título.
O pequeno Edgardo é aos poucos tragado pela nova religião e vai criar laços com os padres e demais meninos do colégio de catecúmenos. Para tentar resgatá-lo, a família Mortara se vê no meio do jogo de interesses das forças que lutam para unificar a Itália e tirá-la das mãos do papado.
O que une os dois universos narrativos, o do garoto e o de seus pais, é um mundo cercado por liturgias –seja a dos cristãos ou a dos tribunais, para onde o caso é levado. Em ambos os casos, mostra o Bellocchio, estamos num mundo de rituais e mistérios, inacessíveis aos não iniciados.
Entre os diretores que competem ao prêmio principal nesta edição de Cannes, Bellocchio, de 83 anos, é o mais velho. Contemporâneo de grandes nomes da era de ouro do cinema italiano –Fellini, Pasolini, Visconti, Bertolucci– ele não está preocupado em reinventar a roda.
Constrói em “Rapito” um painel denso de seu país e uma obra que pouco deve aos grandes dramas políticos que lançou em décadas passadas, como “Boa Dia, Noite” e “Vincere”. Como diz um dos personagens de seu longa, seu mundo é um que “se move em direção ao precipício.”
GUILHERME GENESTRETI / Folhapress