RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – As áreas dominadas pela milícia são as que mais tiveram queixas de furto de energia no Rio de Janeiro. É o que aponta o levantamento feito pela Folha a partir do cruzamento de dados da Light, do Disque Denúncia e do Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).
Só neste ano, foram 667 denúncias feitas contra esse tipo de prática nas áreas controladas pela milícia, o que equivale a 59% do total de casos na capital e mais de um terço de todo o estado.
Esse índice não inclui os bairros em que há presença da milícia, mas nos quais ela não é o grupo com o maior controle do território. É o caso de Olaria, por exemplo, que recebeu desde janeiro 33 denúncias, sendo o quinto bairro da capital com mais queixas. Além de milicianos, Olaria também tem áreas dominadas por traficantes do Comando Vermelho (CV).
As áreas dominadas por criminosos do CV estão m segundo lugar no ranking de queixas, com 273 denúncias –o que equivale a metade das ocorrências nas regiões em que milicianos predominam.
O furto de energia é usado pelos criminosos como uma estratégia para exercer domínio sobre os moradores da região. Os bandidos costumam cobrar taxas extras obrigatórias para garantir o fornecimento de luz. Considerado como um “empreendimento não violento”, esse é um dos fatores que indicam o controle dos grupos armados sobre o território.
“Não se trata aqui da presença desses grupos, mas sim do controle da vida cotidiana nesses espaços caracterizado a partir de diversas atividades e dinâmicas sociais”, diz o relatório do Geni/UFF, que mapeia onde há a dominância de cada um desses grupos armados na região do Grande Rio e adjacências.
Nos cinco primeiros meses deste ano, o Disque Denuncia recebeu 2.036 denúncias de furto de energia. Mais da metade delas, 1.116, foram na capital. O número real de furtos, no entanto, é maior, dado que essa prática muitas vezes não é denunciada, seja por interesse em usar a energia que é desviada, seja por medo de sofrer represálias.
O furto de energia –ou “gato”, como também é conhecido– acontece quando é feita uma ligação clandestina para desviar a energia elétrica sem que seja preciso pagar as concessionárias pelo serviço. Essa prática ilegal sobrecarrega as redes elétricas, encarecendo o fornecimento de energia e podendo causar curtos-circuitos ou incêndios.
“Essas práticas dos grupos armados acabam fazendo com que as pessoas paguem uma energia mais cara do que, por exemplo, nos bairros mais ricos. Não só pela qualidade do serviço, mas também pelo preço. Há áreas, que estão conectadas à rede regular das concessionárias, em que cobram uma sobretaxa sobre a taxação regular. Então esses moradores pagam a conta normal e ainda têm que pagar uma taxa extra para os grupos criminosos. E há áreas em que o único fornecimento é o clandestino fornecido por esses grupos”, diz Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF.
Em todo o estado, o local no topo do ranking das denúncias é Campo Grande, bairro do Rio em que há forte presença de milicianos. Desde o início deste ano, foram feitas 102 queixas de furto de energia na área. O número corresponde a 9% de todas as denúncias da capital e 5% do Rio de Janeiro.
A grande maioria dos casos no estado, 86%, acontece nas regiões em que a Light atua. Com cerca de R$ 11 bilhões em dívidas, a concessionária pediu recentemente recuperação judicial. Uma das justificativas é que ela teve prejuízos milionários por causa dos furtos de luz.
A Light alega que não consegue sanar o problema pela dificuldade de acesso às áreas de risco, pois seus funcionários costumam ser impedidos de entrar nessas regiões por causa da presença do grupos armados e da falta de policiamento adequado. Assim, diz não ter condições mínimas de segurança para reparar a rede e interromper o furto.
A Polícia Militar, por sua vez, diz que trabalha em cooperação com as concessionárias de energia, operadores de telecomunicações e órgãos públicos para buscar soluções conjuntas contras os casos de roubo e furto que afetam os serviços.
A Polícia Civil afirmou que faz ações constantes de combate ao furto de energia, apoiando ações da concessionária. A corporação disse que também investiga e faz operações contra as organizações criminosas que exploram territórios no estado do Rio de Janeiro.
A Light disse estar apurando os dados que mostram como está a situação dos “gatos” hoje. Um estudo da concessionário feito em 2016 mostrou que as regiões com maior incidência de furto de energia eram, empatadas, a zona norte e oeste do Rio, seguida pela Baixada Fluminense. A informação coincide com o cenário traçado pelos dados do Disque Denúncia.
De acordo com o instituto, zona norte e oeste concentram, respectivamente, 26,5% e 25,7% das queixas de furto de luz que acontecem no estado. Os percentuais são mais do que o triplo dos registrados pela segunda cidade do ranking: Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, com 8,2% das denúncias.
Em seguida, aparece Duque de Caxias, com 6,7%; São Gonçalo, com 4,6%; e São João de Meriti, com 4,5%. Assim como a capital, essas quatro cidades também têm áreas sob o domínio de grupos armados, principalmente de milícias e criminosos do CV.
Apesar da forte ligação entre o furto de energia e o crime organizado, o levantamento mostra que a prática não ocorre só nos territórios controlados pelo crime.
Este ano, 70 denúncias foram feitas na capital em áreas em que não há a presença de grupos armados dominando a região. Entre esses bairros estão Humaitá e Glória, ambos na zona sul da cidade; Maracanã, na zona norte, e Cidade Nova, mesmo bairro em que fica a prefeitura do Rio. O número equivale a 6,2% das queixas na cidade e 3,4% no estado.
Há ainda os casos em que a denúncia foi feita em bairros em que há a presença dos grupos armados, mas eles ocupam um espaço pequeno dentro do território. É o caso da Barra da Tijuca e de Copacabana, ambos bairros de renda alta do Rio, no quais foram registradas, respectivamente, 10 e 7 denúncias.
Segundo um líder comunitário do morro da Babilônia, no Leme, há um descaso das concessionárias ao atender áreas consideradas de risco. Ele, que prefere não se identificar, cita como exemplo a própria comunidade da zona sul do Rio, que já teve parceria com a Light para ampliar o acesso à luz elétrica na região.
Ele afirma que a instabilidade da rede elétrica e o alto custo das contas de luz somados ao atendimento precário que o morro recebe fazem com que mais pessoas que morem nessas regiões optem por “gatos”.
CAMILA ZARUR / Folhapress