SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – De fábrica de campeões nacionais a apontado por esconder uma caixa-preta de corrupção que nunca existiu; de alvo de políticos de direita por financiar projetos de infraestrutura de países governados pela esquerda a uma nova orientação, com a volta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder.
Em 16 anos, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) passou por uma mudança de perfil –foi se distanciando dos financiamentos de projetos industriais e de infraestrutura mais complexos e fazendo aportes em projetos mais simples, por meio de distribuição de energia e agricultura.
De 2004 a 2020, houve uma queda dos desembolsos em atividades de alta complexidade, de 32% para 24%. Além disso, verificou-se também um aumento do percentual de desembolsos em atividades de baixa complexidade, de 30% para 40%.
Os dados são de um estudo exclusivo feito pelos pesquisadores do Cedeplar/UFMG (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, da Universidade Federal de Minas Gerais).
Alguns exemplos ajudam a mostrar essa mudança de perfil: o segmento de transporte dutoviário recebeu R$ 22,4 bilhões no ciclo de 2004 a 2008, e o de fabricação de produtos do refino de petróleo recebeu R$ 23,8 bilhões no período 2008 a 2011 –ambos considerados de alta complexidade. Já segmentos de baixa complexidade, como o de distribuição de energia elétrica, recebeu R$ 7 bilhões no ciclo mais recente.
Os pesquisadores separam os financiamentos que ocorreram sob diferentes políticas industriais, a partir do primeiro governo Lula. A PITCE (Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior), por exemplo, foi lançada em 2004, sendo seguida pela PDP (Política de Desenvolvimento Produtivo), que teve início em 2008.
O PBM (Plano Brasil Maior), que enfatizou o estímulo à inovação e à produção nacional, ocupou o período de 2011 a 2014. Já o período pós-PBM, a partir de 2015, coincide com o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, e os governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).
O BNDES, assim como todos os bancos de desenvolvimento, tem papel importante nas políticas de avanço produtivo, isso vale tanto para países em desenvolvimento quanto para países ricos, avalia o professor do Cedeplar/UFMG João Prates Romero, um dos autores do estudo.
Essas instituições ganharam mais peso no mundo, sobretudo para lidar com a entrada da China na produção de bens de maior tecnologia, explica.
“Até onde sabemos, os problemas de corrupção do passado não estão relacionados ao BNDES. A questão é definir como executar essas políticas e qual é o sentido do financiamento. É preciso manter políticas voltadas para o desenvolvimento da estrutura produtiva brasileira, com critérios claros”, diz Romero.
Do ponto de vista dos desembolsos, os pesquisadores ressaltam que houve uma mudança gradual dos desembolsos, que se tornaram mais conservadores ainda nos mandatos anteriores do presidente Lula, quando atividades mais lucrativas tomaram lugar das mais complexas.
Os desembolsos de maior complexidade do primeiro governo Lula incluem recursos para uma indústria petroquímica na Bahia e em Sergipe, por exemplo.
Nos anos recentes, o setor de cana-de-açúcar em São Paulo e Minas Gerais, de baixa complexidade, figurou entre os principais recebedores de recursos, apontam os dados.
“Mas simplesmente reduzir o papel do banco, como foi feito após o impeachment, destrói um instrumento importante em vez de utilizar de forma mais adequada”, diz o professor da UFMG.
A complexidade é medida por meio do nível de diversificação das regiões e das atividades. As atividades mais complexas, em geral, são as de ponta, com maior intensidade tecnológica.
A partir dos dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais), do Ministério do Trabalho, o estudo considera o índice de vantagem comparativa que vai indicar a competitividade ou não naquela atividade. Com isso, também pode ser calculado o número de regiões competitivas em cada atividade.
Os pesquisadores também concluíram que o percentual de desembolsos para atividades com complexidade maior do que a da região em que seriam realizadas –e que ajudariam a elevar a estrutura produtiva daqueles locais– também foi reduzido. Ele passa de uma média de 20%, de 2004 a 2008, para 11%, a partir de 2015.
Ao tomar posse como novo presidente do banco, o petista Aloizio Mercadante defendeu que a instituição voltasse os olhos para a indústria e para empresas de pequeno porte.
“É muito bom, como diz o querido ministro Carlos Fávaro [Agricultura], que o Brasil é a fazenda do mundo. É muito bom, mas não pode ser só a fazenda. Produtos industriais de alto valor agregado são essenciais para o desenvolvimento do Brasil.”
A linha que precisa ser adotada é a garantia de melhores condições de financiamento, sobretudo aqueles destinados à infraestrutura e para investimentos de modernização do parque industrial brasileiro, avalia Rafael Cagnin, economista do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial).
“A falta de financiamento é um problema que vem de muito tempo, as janelas ficaram muito estreitas, com períodos curtos de condição de financiamento favorável. O papel do BNDES no novo governo Lula tem de ser o de reverter esse processo, considerando as carências de infraestrutura que são muito grandes.”
Em 2018, a TLP, que considera a inflação pelo IPCA (índice de preços ao consumidor) mais a taxa de juros real dos títulos do Tesouro, substituiu a TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), que era mais baixa.
Cagnin acrescenta que os campos de maior complexidade estão em setores de alta concorrência e em que a inovação é um eixo. Se tivesse tido uma postura mais ativa para reverter ou pelo menos estancar esse processo, o BNDES estaria preservando o financiamento desses ramos mais complexos.
“Como banco de desenvolvimento, ele precisa impulsionar as atividades que agregam mais valor e que normalmente são as de maior complexidade e mais intensivas em tecnologia”, diz.
As falas de Mercadante têm reforçado os sinais de que uma nova política para o BNDES, em contraste com os governo anterior. A nova diretoria também dá sinais de uma maior atenção a projetos de economia verde e voltados para a sustentabilidade.
Apesar disso, sob condição de anonimato, um ex-diretor do banco diz que a apelidada “síndrome da caneta sem tinta”, em que os técnicos do BNDES não se sentem seguros para avalizar projetos de maior complexidade e que exigem mais recursos continua, segue ocorrendo mesmo sob o novo governo Lula.
Ele complementa que não é o BNDES que escolhe as empresas que receberão financiamento, mas a instituição expressa as prioridades por meio das condições de financiamento ofertadas.
Se quem bate o martelo na aprovação de um financiamento é a demanda, é natural que a partir da crise de 2015 e 2016, as empresas tenham demandado recursos para projetos menos complexos, diz.
DOUGLAS GAVRAS / Folhapress