MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – O MPT (Ministério Público do Trabalho) vai investigar a exploração de grupos de yanomamis na extração da piaçaba na região do médio rio Negro, com base em uma série de reportagens recentes publicadas pela Folha de S.Paulo.
O material será incluído em procedimento já aberto pelo MPT, como elemento de prova para a investigação e como base para novas diligências a serem feitas na região.
Um primeiro passo será ouvir diferentes lideranças yanomamis que representam aldeias da terra indígena no lado do Amazonas, dentro do que prevê a convenção número 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). O Brasil é signatário da convenção, que estabelece a necessidade de consulta a povos tradicionais, há 20 anos.
Além da investigação sobre as relações de trabalho na extração da piaçaba, o MPT vai incluir o assunto entre as pautas prioritárias do GT (grupo de trabalho) sobre povos indígenas.
As informações sobre as medidas a serem adotadas após a publicação das reportagens foram repassadas por Jorsinei Dourado do Nascimento, procurador regional do Trabalho no Amazonas e em Roraima e vice-coordenador nacional do GT Povos Indígenas do MPT.
“Existe um procedimento, e as reportagens trazem fatos mais recentes. O que as reportagens mostraram será inserido nesse procedimento”, disse o procurador. “O extrativismo feito pelos indígenas alimenta toda uma cadeia produtiva. Quem explora essa mão de obra precisa ser responsabilizado.”
Esse é o segundo procedimento do tipo aberto pelo MPT nos últimos anos. Em 2014, MPT, MPF (Ministério Público Federal) e auditores do Trabalho fizeram ações de resgate de trabalhadores em condições de escravidão em piaçabais do médio rio Negro. A atuação resultou em condenações de atravessadores pela Justiça do Trabalho.
A exploração de yanomamis, dentro de um modelo rudimentar de endividamento de indígenas e não indígenas que atuam em piaçabais, ocorre em meio a um apagão da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) na região.
O apagão se consolidou em 2018, com o desmonte de uma CTL (coordenação técnica local) da Funai que funcionava em Barcelos (AM) para atender os yanomamis. O desmonte se aprofundou no governo Jair Bolsonaro (PL) e prossegue no governo Lula (PT), com apenas um coordenador substituto, um funcionário efetivo e um terceirizado atuando na unidade do órgão em Barcelos.
A reportagem questionou a Funai e o MPI (Ministério dos Povos Indígenas) sobre a existência de medidas para conter a exploração de yanomamis na piaçaba. Não houve resposta até o momento da publicação.
A reportagem foi à região de Barcelos, percorreu por quatro dias os rios Negro e Padauiri e constatou a exploração de yanomamis exercendo a atividade extrativista.
No sábado (13), o jornal mostrou que yanomamis de aldeias da terra indígena no lado do Amazonas -o território também está em Roraima- fazem longas jornadas até comunidades fora da área demarcada, para se aviarem com patrões ou patrõezinhos em atuação nesses lugares.
O aviamento é o fornecimento de mantimentos básicos -como farinha e biscoito- e combustível para que os trabalhadores possam permanecer por semanas nos piaçabais, extraindo a fibra usada na fabricação de vassouras. O pagamento a patrões é feito com a própria piaçaba, o que gera endividamento ao longo do processo.
Esse sistema é uma herança dos ciclos da borracha nos séculos 19 e 20. Pouco mudou ao longo das décadas, e inclui indígenas (tanto yanomamis quanto de outras etnias) e não indígenas.
Além das jornadas de dias em embarcações com motores de baixa potência e do endividamento, yanomamis criam uma relação de dependência com as comunidades, inclusive com atuação conjunta com indígenas de outras etnias -especialmente os barés- e com não indígenas em piaçabais.
Há indícios de que parte da piaçaba extraída e destinada a patrões nas comunidades, como a Nova Jerusalém, no rio Padauiri, afluente do rio Negro, é proveniente da Terra Indígena Yanomami. A fibra é retirada por quem não vive nas aldeias do território demarcado.
Existe discriminação aos yanomamis nas comunidades dos afluentes do rio Negro. E incidência da doença de Chagas entre indígenas, associada ao trabalho na extração da fibra.
No domingo (14), uma segunda reportagem mostrou que grupos se articulam para representar os yanomamis da piaçaba e para acessar a fibra do território. A principal organização é uma cooperativa liderada por patrões, e que diz ter yanomamis entre os associados. Mantimentos foram enviados para a borda da terra indígena sem o aval da Funai.
A Terra Indígena Aracá-Padauiri, onde ocorre a exploração da piaçaba num modelo de aviamento, nunca chegou perto de ser demarcada, como mostrou reportagem veiculada na segunda (15). O processo da demarcação tramita há 16 anos na Funai. O território é vizinho à terra yanomami.
“Aquela área é muito distante, isolada, de muito risco. É muito difícil ir até lá para diligências, só com PF e Exército. Há uma grande dificuldade de identificar essa cadeia produtiva da piaçaba”, afirmou o procurador Nascimento. “Qualquer intervenção não indígena deve levar em conta a convenção da OIT.”
Segundo o integrante do MPT, o extrativismo feito não é para consumo próprio, e sim para empresários que exploram o uso da piaçaba. “Uma cadeia explora economicamente uma atividade, e precisa ser responsabilizada até o consumidor final. Já há jurisprudência nesse sentido. É preciso garantir saúde, segurança no trabalho e remuneração justa e adequada.”
Nascimento disse ainda que a servidão por dívida é proibida no Brasil e “remete a condições análogas à escravidão”. “Isso não é natural.”
“Essa não é uma investigação comum, como num ambiente urbano ou rural. Trata-se de um ambiente duplamente afetado, por existirem questões culturais dos indígenas”, afirmou o procurador.
VINICIUS SASSINE / Folhapress