‘Por que só para a mãe é natural cuidar?’, questiona juíza do Trabalho

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRES) – A convenção 156 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) está em processo de ratificação pelo governo brasileiro. Intitulado “Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres”, o documento foi elaborado há mais de 40 anos, em 1981, com a proposta de combater a discriminação no ambiente de trabalho relacionada às responsabilidades familiares. As demandas da família não podem ser um obstáculo para o pleno emprego e o desenvolvimento profissional.

O objetivo é deixar claro aos empregadores que tanto homens quanto mulheres com dependentes têm obrigações familiares que interferem na vida profissional. Em outras palavras, a responsabilidade pelos filhos é dos dois -o que torna natural que o homem procure encaixar na sua rotina atividades como buscar os filhos na escola, levá-los ao médico, participar de reuniões escolares ou tenha que se ausentar do trabalho caso a criança fique doente. Tarefas tradicionalmente associadas às mães.

“Isso envolve uma mudança profunda de mentalidade, que infelizmente não se consegue de uma hora para outra”, diz Patrícia Maeda, juíza regional do Trabalho da 15ª Região e juíza auxiliar da presidência do TST (Tribunal Superior do Trabalho). “Existe muita discriminação no ambiente de trabalho envolvendo as trabalhadoras mães. Elas precisam se ausentar com alguma frequência, porque é sobre elas que recai a cobrança de cuidados com os filhos, o que compromete o seu desempenho e a conquista de oportunidades na carreira”, afirma.

“Mas a pergunta que a sociedade como um todo precisa fazer é: por que só para a mãe é natural o cuidar? Por que o pai também não é cobrado por isso?”, questiona. “À medida que a sociedade decreta que para a mãe é natural cuidar, está decretando também que para ela é natural aguentar a sobrecarga que este cuidado envolve”, afirma a magistrada, doutora em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), que já atuou como fiscal do trabalho. Patrícia sentiu essa discriminação dentro da própria família.

“Eu e meu marido tivemos duas filhas, hoje com 17 e 20 anos. Sempre que eu me ausentava por alguma viagem a trabalho, ele ficava responsável pelas duas, o que é natural. Mas minha mãe e minhas tias o chamavam de ‘coitado’, por ficar sozinho com as crianças. Quando acontecia o contrário, ninguém falava o mesmo de mim”, diz ela, ressaltando que, mesmo na Justiça do Trabalho, muitas mulheres deixam de ser promovidas devido à falta de disponibilidade para deslocamento.

“Se um homem deixa a família para trabalhar em outra cidade, ele é considerado ‘esforçado’, está fazendo tudo pelos seus. Mas se uma mulher toma a mesma atitude é criticada, afinal, ‘como ela tem coragem de deixar seus filhos?’, compara Patrícia, autora do livro “Trabalhadoras do Brasil, uni-vos!: a participação das mulheres na construção dos direitos sociais inscritos na Constituição Federal de 1988” (editora Letramento, 2021).

A magistrada ressalta, porém, que o Estado também deve cumprir sua parte na garantia dos cuidados, com a ampla oferta de creches e escolas em tempo integral. “Mas isso nunca se cumpriu”, diz.

Além da ratificação da convenção 156 da OIT, o Brasil acaba de aprovar a Lei 14.457/2022, que entrou em vigor em setembro, com o objetivo de garantir não só que o mercado de trabalho seja mais inclusivo e atento à mulher, mas também que o ambiente seja equânime e seguro. “A lei introduz a ideia de parentalidade, algo novo no ordenamento jurídico brasileiro. Parentalidade diz respeito à divisão igualitária pelo cuidado das crianças entre pais e mães, é a responsabilidade pelo cuidado”, afirma. A lei considera a flexibilização de jornadas de trabalho para cuidados com filhos, para ambos os sexos. “É a chave para começar a pensar na isonomia no mercado de trabalho em questão de gênero.”

Na opinião de Lorena Hakak, professora de Economia da UFABC (Universidade Federal do ABC) e presidente da Sociedade de Economia da Família e do Gênero (GeFam), a lei brasileira (que concede 120 dias de licença-maternidade e cinco dias de licença-paternidade) reforça uma norma social que considera o filho como sendo apenas da mãe.

“Existem uma série de estudos, em âmbito mundial, que apontam que a licença-paternidade estendida não só fortalece o vínculo do pai com a criança, como permite que as mulheres não sejam penalizadas no mercado de trabalho”, diz Lorena.

A especialista integra um grupo de trabalho, criado mês passado na Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, com a participação de membros da sociedade civil, empresários e parlamentares, para discutir a ampliação da licença-paternidade no Brasil. O objetivo é diminuir as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho e estimular maior envolvimento dos pais no cuidado dos filhos.

‘Mas por que eu tenho que ajudar, se ela tem a mãe dela?’

Para encorajar os pais a assumirem um papel mais ativo no cuidado dos filhos, algumas empresas estão oferecendo licença parental estendida. É uma maneira de promover a igualdade de gênero e uma divisão mais igualitária de cuidados não remunerados e tarefas domésticas dentro das famílias.

A farmacêutica Sanofi, multinacional francesa dona da marca Medley, é uma dessas empresas. “Foi preciso muita mobilização para fazer com que os funcionários entendessem que o pai não é quem ajuda a mãe, o pai é quem cria”, diz Neila Lopes, executiva de diversidade e cultura da Sanofi. A companhia adotou a licença-paternidade remunerada de até seis meses em 2020 e percebeu que precisava fazer ajustes no programa.

“Em geral, os funcionários da área administrativa se perguntavam por que teriam que sair em licença estendida, uma vez que a mulher contava com a mãe dela ou alguém da família para ajudá-la neste momento”, afirma Neila, reforçando que a questão neste ponto era muito mais cultural.

“Já no nosso chão de fábrica, percebemos que a questão era outra: o homem em casa iria perder o vale-alimentação, o que significava um gasto maior no orçamento doméstico”. A empresa passou a conceder o benefício também no período da licença-paternidade estendida.

Segundo Neila, nos primeiros anos do programa, apenas 48% dos homens aderiram. “Este ano, já estamos em 73%. Nossa meta global é chegar a 80% em 2025”, afirma. Entre 2020 e 2022, 134 funcionários saíram em licença-paternidade na Sanofi no país.

Já na Rhodia Brasil, controlada pela multinacional belga Solvay, 40 pais usufruíram da licença remunerada de quatro meses há dois anos. Entre eles, está o químico Felipe Rocha, gerente de vendas e marketing da companhia, que acaba de ser pai de Cecília, de 20 dias, sua primeira filha. As mulheres são minoria na Rhodia Brasil: representam 20% dos 1.700 funcionários, respondendo por 33% das posições de liderança.

A política de licença coparental (licença-maternidade, licença-paternidade e de adoção) integra o portfólio de benefícios implementado pela Solvay dentro das suas metas ESG (de boas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa). “Queremos que todos os que trabalham conosco possam ter o melhor equilíbrio entre as obrigações profissionais e os compromissos familiares”, diz Fernanda Zanetti, executiva de recursos humanos da Solvay na América Latina. Até hoje, 400 funcionários no mundo usufruíram da licença-paternidade. São ao todo 21 mil empregados.

Na multinacional americana Haleon, que fabrica o antiácido Eno, a licença remunerada de seis meses para pais começou a valer este ano no Brasil. “Essa ação reflete o nosso compromisso de oferecer oportunidades igualitárias e um ambiente inclusivo”, diz Marta Martins, diretora de RH da Haleon para a América Latina. A companhia conta com cerca de 1.000 funcionários no país, sendo 52% mulheres. Elas ocupam dois terços dos cargos de liderança na empresa.

DANIELE MADUREIRA / Folhapress

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