CANNES, FRANÇA, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Segunda Guerra tinha terminado havia pouco mais de dez anos quando Alain Resnais rodou o aclamado “Noite e Nevoeiro”. No curta-metragem, ele junta imagens das instalações desativadas do campo de concentração de Auschwitz com uma narração que descreve com minúcias os horrores ali perpetrados, anos antes.
Por isso, fica a pergunta: por que o cineasta Steve McQueen precisou de quatro horas para operar o mesmo procedimento que o seu colega francês havia conseguido lograr com 33 minutos e de forma mais bem-sucedida? É o que fica após a exibição de seu “Occupied City”, que estreou no Festival de Cannes.
Assim como Resnais, o diretor de “12 Anos de Escravidão” se propõe aqui a fazer um cruzamento entre espaço e extermínio. Em ambos os casos, é a voz em off que dá cabo de relatar as atrocidades acometidas, restando ao público imaginá-las enquanto os olhos percorrem os lugares filmados.
McQueen resolveu voltar sua lente para os bairros da Amsterdã contemporânea e, com a câmera parada, se propõe a esmiuçar o que neles se sucedeu durante a ocupação alemã do país, no início dos anos 1940. Enquanto filma bares, vitrines, calçadas e canais da cidade, vai empilhando casos de judeus que viveram ali, décadas atrás, e tiveram um desfecho mais ou menos parecido: os que não conseguiram fugir foram ceifados pelo morticínio em escala industrial dos nazistas.
Não é como se o expediente não causasse assombro, é claro. Existe ali uma boa discussão sobre a memória das cidades que vai se apagando no fio da história. O problema é que o empilhamento das histórias, contadas sempre sob a mesma forma de uma narração monocórdica inevitavelmente leva o espectador à letargia, por mais trágicos que sejam os casos ali narrados.
Tampouco ajuda o fato de que McQueen tenha escolhido filmar Amsterdã num momento muito específico: aqueles primeiros meses de 2020, quando a Covid se alastrou e a vida nas cidades tomou rumos distópicos, ou “uma situação sem precedentes nos tempos de paz”, como diz a voz saindo de algum telejornal exibido num televisor de lanchonete. Se por um lado o resgate daqueles tempos atiça uma lembrança quase universal, independente da nacionalidade, por outro deixa em aberto que tipo de analogia o diretor pretendeu fazer ligando o nazismo e o coronavírus.
Nos dois episódios históricos, sugere a costura do filme, houve confinamento, toque de recolher e rotina urbana transformada de forma radical. Mas as raízes que levaram a atitudes tão drásticas são incomparáveis: uma invasão perpetrada por uma ditador estrangeiro, num caso, e uma recomendação vinda de entidades sanitárias, no outro. Quem marchou contra as restrições nos anos 1940 foi a resistência à ocupação nazista; nos anos 2020, foi a turba que peitou a ciência.
Difícil imaginar “Occupied City” na programação regular dos cinemas, até mesmo daqueles do circuito mais autoral. É uma obra que talvez tivesse mais espaço nas mostras de artes visuais nas quais McQueen costumava expor suas video-instalações antes de virar cineasta.
GUILHERME GENESTRETI / Folhapress