Manifestações contra o chamado PL da Dosimetria tomaram as ruas de ao menos 21 capitais brasileiras neste domingo (14), reunindo movimentos sociais, centrais sindicais, parlamentares de esquerda e artistas em atos que tiveram como eixo central o repúdio à redução de penas para condenados pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 — medida que pode beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Convocados pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, os protestos também incorporaram críticas ao Congresso Nacional, ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e a outras pautas em tramitação no Legislativo, como o marco temporal e a escala de trabalho 6×1.
Pela manhã, houve mobilizações em capitais como Belo Horizonte, Campo Grande, Cuiabá, Maceió, Fortaleza, Salvador e Brasília. À tarde, os atos ganharam maior visibilidade em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde a presença de artistas impulsionou o público e deu caráter musical às manifestações. A expectativa dos organizadores era de atos em ao menos 49 cidades.
Na capital federal, manifestantes se concentraram em frente ao Museu da República e marcharam até o Congresso Nacional, entoando palavras de ordem como “sem anistia para golpista” e exibindo cartazes com críticas diretas a Hugo Motta. Sindicatos e partidos de esquerda defenderam que a pressão das ruas pode influenciar a votação do projeto no Senado, que ainda analisará a proposta aprovada pela Câmara.
Capital Paulista
Em São Paulo, a Avenida Paulista foi ocupada a partir do início da tarde, com concentração nos quarteirões próximos ao Museu de Arte de São Paulo (Masp). Representantes de centrais sindicais, movimentos sociais, estudantis e partidos de oposição ao PL puxaram coros de “sem anistia” e carregaram faixas com frases como “Congresso inimigo do povo” e “Com esse Congresso não dá”. O público cresceu ao longo da tarde e, por volta das 16h, ocupava cerca de três quarteirões da avenida.
Segundo levantamento do Monitor do Debate Político em parceria com a ONG More in Common, o ato na Paulista reuniu aproximadamente 13,7 mil pessoas no pico, número inferior ao registrado em 21 de setembro, quando protestos contra a PEC da Blindagem levaram cerca de 40 mil pessoas ao local. Ainda assim, a mobilização manteve tom crítico ao Congresso e à forma como o projeto foi votado na Câmara, em sessão que atravessou a madrugada.
No carro de som, discursos de parlamentares e ministros reforçaram a narrativa de que o PL representa uma “anistia disfarçada”. O ministro da Secretaria-Geral, Guilherme Boulos, foi um dos que falaram ao público, destacando a condenação de Bolsonaro e de militares pela tentativa de golpe e criticando o que chamou de prioridades invertidas do Legislativo. “Ouça, Congresso Nacional, a voz do povo”, disse, após ser interrompido por gritos de “sem anistia”. A deputada Érika Hilton (PSOL-SP) adotou tom semelhante, classificando o Congresso como “canalha” e “inimigo do povo” e afirmando que a pauta da anistia não reflete as demandas da maioria da população.
Também presente na Paulista, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, avaliou que o Senado está mais dividido do que a Câmara e afirmou esperar que os atos pressionem os senadores a barrar o projeto. Na avaliação dele, caso a proposta avance, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve vetá-la.
Após discursos, o ato em São Paulo ganhou caráter musical, com apresentações de artistas como Zélia Duncan e Chico César. Em meio às canções, críticas diretas a lideranças do Congresso foram entoadas do palco, mantendo o tom político da manifestação.

Famosos no Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, milhares de pessoas ocuparam um quarteirão da orla de Copacabana, em um protesto dividido em dois trios elétricos: um dedicado a falas de movimentos sociais e outro ao chamado “Ato Musical 2: O Retorno”, sequência do protesto realizado em setembro contra a PEC da Blindagem. A mobilização contou com a presença de nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Lenine, Paulinho da Viola, Xamã, Duda Beat, Baco Exu do Blues e Leila Pinheiro, além de atrizes como Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Sophie Charlotte, Heloisa Périssé e Júlia Lemmertz.
Caetano Veloso abriu a parte musical com “Alegria, Alegria”, enquanto discursos anteriores concentraram críticas no presidente da Câmara. Um dos trios foi coberto com uma bandeira exibindo o rosto de Hugo Motta e a inscrição “Congresso inimigo do povo”. Segundo o Monitor do Debate Político, o ato em Copacabana reuniu cerca de 18,9 mil pessoas — também abaixo do público de setembro, mas impulsionado pela forte adesão de artistas.
No Rio, além do PL da Dosimetria, manifestantes criticaram a escala de trabalho 6×1, cobraram medidas de combate ao feminicídio, condenaram o marco temporal para demarcação de terras indígenas e pediram transparência em investigações envolvendo o Banco Master. Performances chamaram atenção do público, como a de um grupo de mulheres que distribuiu bonecos de borracha representando ratos, baratas e cobras, além de fotos de deputados que votaram a favor do projeto. Para as participantes, a ação simbolizava decisões tomadas “na calada da noite” e sem transparência.
Depoimentos de manifestantes reforçaram o caráter histórico atribuído aos atos. A aposentada Angela Tarnapolsky, de 72 anos, afirmou que não poderia se omitir diante do que chamou de retrocessos democráticos e comparou o atual Congresso a períodos autoritários do passado. Já a professora Carolina Fernandes Calisto disse que a performance era um recado direto aos parlamentares:
“É o povo quem deve dar as ordens”.
O deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) foi um dos nomes mais celebrados no Rio após a Câmara decidir suspender seu mandato por seis meses, em vez de cassá-lo. Em discurso, agradeceu o apoio popular e afirmou que “transferirá o gabinete para as ruas” durante o período de suspensão, mantendo a mobilização contra o PL da Dosimetria e contra as chamadas emendas PIX, que permitem repasses de recursos sem detalhamento do gasto.

Salvador
Em Salvador, os manifestantes se concentraram no Morro do Cristo e caminharam pela orla da Barra, carregando um boneco que representava Hugo Motta, com cartazes que o chamavam de covarde, corrupto e golpista. Em João Pessoa, terra natal do presidente da Câmara, faixas com a frase “Hugo Motta vergonha da Paraíba” marcaram o protesto. Em outras capitais, como Brasília, Goiânia e Recife, discursos cobraram do Congresso a votação de pautas defendidas pela esquerda e denunciaram a repressão policial ocorrida durante a votação do projeto na Câmara, quando o deputado Glauber Braga foi retirado à força da Mesa Diretora e jornalistas relataram agressões e impedimentos ao trabalho.
Próximos passos
A Câmara aprovou o PL da Dosimetria na última quarta-feira (10), por 291 votos a 148, em sessão que terminou às 3h56 da madrugada. Relatado pelo deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), o texto substituiu a anistia ampla e prevê a redução de penas e mudanças nos critérios de cálculo e progressão de regime para crimes contra o Estado Democrático de Direito quando praticados no mesmo contexto. Especialistas apontam que a proposta reduz sensivelmente os percentuais de cumprimento de pena, o que pode beneficiar Bolsonaro e outros réus, como ex-ministros e militares envolvidos na trama golpista.
A matéria segue agora para o Senado, onde o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP), indicou que a votação deve ocorrer ainda neste ano. Até lá, os organizadores prometem manter a mobilização nas ruas, apostando que a pressão popular pode barrar o avanço do projeto e influenciar o debate político às vésperas das eleições de 2026.



