SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O feminismo negro tem os mesmos interesses que o movimento trans: lutar para viver em um corpo livre. É o que defende Patricia Hill Collins, uma das principais intelectuais dos Estados Unidos.
Para a autora, ainda que feministas negras e ativistas trans possam adotar estratégias políticas distintas em certos momentos, isso não impede que sejam aliadas.
“Solidariedade não significa semelhança”, diz Collins, em entrevista na Universidade Federal de São Paulo, em Guarulhos. “Apoiar as pessoas trans à nossa volta é condizente com o feminismo negro.”
Professora emérita da Universidade de Maryland, Collins está no Brasil para uma série de aulas públicas na Unifesp. Na sexta-feira, às 15h, ela fala na Feira do Livro organizada pela Associação Quatro Cinco Um na praça Charles Miller.
A autora é uma das responsáveis pela popularização do termo interseccionalidade, que analisa hierarquias sociais a partir da intersecção entre diferentes sistemas de opressão. “Precisamos discutir raça, gênero e sexualidade conjuntamente”, explica.
Não é novidade que ativistas trans têm uma relação tumultuosa com parcelas do movimento feminista. Posturas abertamente hostis a pessoas trans são comuns por parte de adeptas do chamado feminismo radical -as “radfem”- e de figuras ligadas ao feminismo liberal, como a autora britânica J.K. Rowling.
Por outro lado, pensadoras negras geralmente são vistas por ativistas trans como aliadas de primeira hora, argumenta Jaqueline Gomes de Jesus, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autora de “Transfeminismo: Teorias e Práticas”, primeiro livro em língua portuguesa sobre o tema.
“O debate sobre quem é mulher vem desde o século 19, com Sojourner Truth. Já bell hooks questionou por que algumas mulheres, no caso as mulheres negras, não estavam presentes no feminismo. Quando Collins fala sobre interseccionalidade, isso também diz respeito às pessoas trans”, afirma Jesus. Segundo ela, “o transfeminismo se inspira desde sempre no feminismo negro”.
Collins acredita que a recíproca é verdadeira. “O movimento trans, particularmente as mulheres trans negras, tem contribuído para uma análise interseccional sobre as relações de poder”, afirma.
Ela diz estar aprendendo aos poucos sobre a temática LGBTQIA+, seja por meio de artigos acadêmicos ou de programas de televisão. Fã do reality show americano RuPaul’s Drag Race, Collins vê na cultura pop um terreno importante para desconstruir preconceitos. “Esse é o tipo de linguagem que a juventude usa para se expressar”, afirma.
Se, por um lado, a maior visibilidade da comunidade LGBTQIA+ pode ajudar a promover a inclusão, Collins alerta para a reação de grupos conservadores movidos pelo “medo do desconhecido”.
A autora vê com preocupação a ofensiva antitrans que tem ganhado força nos Legislativos dos EUA e do Brasil, mas tem esperança de que a comunidade LGBTQIA+ será vitoriosa no longo prazo. “Há um número crescente de pessoas que estão se fazendo enxergar e ouvir, e elas não vão simplesmente desaparecer”, diz.
Segundo Collins, a extrema direita que hoje ataca os direitos dessa parcela da população passou a se organizar nos EUA antes mesmo da chegada de Donald Trump ao poder. Ela diz que a eleição de Barack Obama, em 2008, foi vista por supremacistas brancos como uma afronta.
“Esses grupos estão tentando desfazer as conquistas do movimento por direitos civis. Querem minar o direito ao voto e os direitos reprodutivos”, diz.
Ainda assim, a autora evita endossar candidatos. Para ela, nem o governo de Joe Biden, nos EUA, e nem o de Lula, no Brasil, podem resolver sozinhos os problemas estruturais que afetam grupos minorizados. “Não existe varinha mágica.”
Por outro lado, acredita que ambos os governantes merecem crédito pelo enfrentamento à crise do clima e pela ênfase no combate à pobreza.
A pesquisadora já esteve no Brasil muitas vezes. Entre suas referências no país, ela cita a escritora Conceição Evaristo, a pedagoga Nilma Lino Gomes e a filósofa Djamila Ribeiro, que é colunista da Folha.
A obra de Collins é editada no Brasil pela Boitempo e inclui títulos como “Pensamento Feminista Negro”, “Interseccionalidade” e “Bem Mais que Ideias”.
No primeiro livro, publicado originalmente em 1990, a autora discorre sobre os papéis sociais reservados às mulheres negras. É o que ela chama de “imagens de controle”: roteiros pré-definidos e reforçados pela mídia que restringem as mulheres negras a um lugar de subserviência ou hipersexualização.
Hoje, três décadas após a publicação da primeira edição do livro, Collins diz que a principal mudança observada por ela é a maior consciência sobre o poder das imagens. A internet deu às mulheres negras a possibilidade de reivindicar a própria imagem e contar a própria história.
Nesse sentido, expressa sua admiração pelas cantoras Beyoncé e Lizzo. “Tem todo um grupo de mulheres negras que estão não apenas desafiando essas imagens de controle, mas fazendo arte com o que querem ver e debater.”
CATARINA FERREIRA E DANI AVELAR / Folhapress