Festival de Cannes traz ruína de família tunisiana com jogo de cena feminista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O universo feminino é central em “Les Filles d’Olfa”, ou as filhas de Olfa, da cineasta tunisiana Kaouther Ben Hania, que disputa a Palma de Ouro no Festival de Cannes com um extenso jogo de cena entre Olfa Hamrouni, mãe de quatro garotas, duas ainda morando com ela. As mais velhas “estão com os lobos”, diz ela, na introdução do longa.

Para atender à expectativa criada pelo filme, não convém revelar quem são esses lobos e qual o destino das jovens -ainda que isso esteja na sinopse disponibilizada pelo festival-, mas estamos diante de um caso real que a diretora trata de retrabalhar na tela.

A proposta é pôr Olfa e as duas meninas mais jovens em frente às câmeras para narrar e reencenar suas vidas não apenas para o espectador, mas para as atrizes Hind Sabri, que assume o papel da mãe, Ichrak Matar e Eya Chikhaoui, fazendo as vezes das filhas ausentes. Há ainda um ator homem, Majd Mastoura, que dá conta de interpretar todas as figuras masculinas, desde o pai delas até um policial.

Como em “O Homem que Vendeu sua Pele”, seu longa anterior, Hania se baseia num caso real, mas não tem as intenções de remontar a íntegra da tragédia nem quer ser voz ativa nos rumos do trabalho.

A diretora prefere se tornar invisível para que, momento a momento, tanto Olfa como as filhas tenham a chance de narrar a decomposição do núcleo familiar -há depoimentos sobre o marido brutamontes, o padrasto abusador, as pequenas rebeldias das filhas, as discordâncias, as descobertas sexuais, lembranças cotidianas–, enquanto os episódios são arquitetados em cena entre um depoimento e outro.

Se podem despertar o interesse como mise en scène no princípio, aos poucos fica claro que todo o processo é um teatro terapêutico para que Olfa e as meninas se abram para as câmeras e revelem mais do que numa entrevista jornalística ou num documentário convencional.

Esse método injeta bastante sentimentalismo ao longa, ainda que para a plateia ocidental, ver uma mãe tunisiana espancando sua filha por ter depilado as pernas não é o melhor caminho para desmontar estereótipos.

Felizmente, Olfa, que veio para o festival e participou da coletiva de imprensa, não recuou quando questionada sobre a forma como criou suas meninas, calcada na herança da sua criação, nas tradições do islamismo (mesmo que não radical) e no medo da sexualidade. Ela, mesmo firme em alguns costumes, sabe ser feminista a seu jeito, e não tem vergonha de soar careta ao discordar de ideias liberais.

Além de feminista e mulher, em primeiro lugar ela se coloca como mãe –não uma heroína, como também mostra Catherine Corsini em “Le Retour”, também em competição.

Para não revelar mais, basta dizer que a terapia ganha contornos sociológicos quando a narrativa se aproxima dos dias atuais e do contexto da revolução tunisiana em 2010. E se para o espectador tudo pode parecer distante num primeiro olhar, Hania sabe que ter seu filme projetado em Cannes ecoará o radicalismo que atingiu diversas partes do mundo, corroendo corações e mentes, nações e famílias.

HENRIQUE ARTUNI / Folhapress

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