Investir no Brasil é fazer o plano A, o plano B e o plano C, diz chefe da chinesa GWM no Brasil

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O andar ocupado pela GWM em um prédio da zona sul de São Paulo tem mesa de pingue-pongue, máquinas com petiscos e café grátis. Não é nada diferente de outras tantas empresas da região, mas essas comodidades agradam aos funcionários chineses.

A montadora está se adaptando aos modos do Brasil, e esse trabalho passa por tropicalizar os escritórios. Oswaldo Ramos, o principal executivo da montadora no Brasil e CCO (chefe da área comercial) da empresa, fala dessa transformação e das expectativas da fabricante no mercado nacional, em que está investindo R$ 10 bilhões.

Após lançar os importados da linha Haval, como o Haval H6, a GWM se prepara para iniciar a produção em Iracemápolis (interior de São Paulo), na unidade que já pertenceu à Mercedes-Benz. A data de início será anunciada nesta quinta (27), e o primeiro modelo a sair das linhas de montagem deve ser a picape Proer.

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Folha – O Brasil teve algumas fábricas de automóveis fechadas nos últimos anos, inclusive a que foi adquirida pela GWM em Iracemápolis. Nesse cenário, por que a montadora chinesa decidiu produzir veículos no país?]

Oswaldo Ramos – O Brasil, independentemente do momento da economia, se tiver um crescimento de PIB mais forte, estará no top 10 mundial. E se não tiver, vai continuar lá. O país sempre terá um mercado relevante.

Folha – A empresa produzirá híbridos flex. Pretende também lançar modelos híbridos que combinem apenas eletricidade e etanol?

Oswaldo Ramos – Tecnicamente, o híbrido flex também é um carro híbrido 100% a etanol. A tecnologia fica até mais simples se for retirado o restante do software da gasolina. Não há obstáculo nenhum, e se for essa a regra do jogo, estamos prontos. Mas é importante definir essa regra.

O que queremos para a sociedade? O que queremos em sustentabilidade? Não adianta fazer regras de laboratório e não ser exatamente o que o consumidor quer.

Sabemos que a maioria dos carros flex roda somente com gasolina, e hoje não existe nem produção suficiente de etanol caso todo mundo vire a chave da noite para o dia. É preciso planejamento, estratégia.

Folha – E como a montadora vê essa tecnologia?

Oswaldo Ramos – É preciso planejamento de médio prazo para aumentar a produção de etanol e substituir a gasolina em toda a frota circulante. É uma conta a ser feita, muito mais complexa do que só o automóvel. Há todo um ecossistema.

Mas nós estamos inovando, trazendo um produto para o Brasil que é prioritariamente elétrico, o híbrido plug-in [que pode ser recarregado na tomada] com uma bateria que permite rodar 170 km no modo elétrico.

Para a maioria das pessoas, 80% do uso é nesse modo elétrico. Se precisar, você pode utilizar o motor a combustão. Em termos de tecnologia, há muitas vantagens para o consumidor e para o meio ambiente.

Folha – Mas o híbrido plug-in não é um projeto muito caro pelo fato de ter uma bateria bem maior, além dos dois motores?

Oswaldo Ramos – Sem dúvida alguma existe um custo, que depende da escala.

Folha – E a escala depende do quê?

Oswaldo Ramos – Se escolhermos que essa é uma opção tecnológica para o Brasil, boa para 80% dos consumidores, concentrarmos investimento na direção do híbrido plug-in –que pode ser flex ou a etanol, conforme for a diretriz energética do país– e conseguirmos escala, é possível viabilizar.

É mais barato, às vezes, fazer um plug-in híbrido com uma boa bateria do que fazer um carro 100% elétrico com uma bateria ainda maior. Ou, por outro lado, ficar tentando viabilizar o motor a combustão, seja com combustível sintético, seja com outras soluções.

Enxergamos que, para a matriz energética do Brasil, o híbrido flex é uma grande solução, olhando pela demanda do consumidor.

Folha – Qual é o papel do etanol?

Oswaldo Ramos – Se a gente analisar o ecossistema inteiro, da produção ao nosso interesse no meio ambiente, sem dúvida o etanol pode ter um espaço ainda maior.

A tecnologia nova, a eletrificação, não vem para substituir o flex ou o etanol. O Brasil tem um espaço para ser protagonista nessas novas fontes de energia.

O biocombustível combinado a um sistema plug-in híbrido é uma solução excepcional, mais barata e mais viável do que o carro 100% elétrico, e não requer tamanha infraestrutura.

Folha – A GWM já anunciou a produção nacional da picape Proer. Ao mesmo tempo, existe a discussão sobre retomar a cobrança do imposto sobre importados elétricos e híbridos. Há alguma preocupação com esse tema?

Oswaldo Ramos – Investir no Brasil é fazer o plano A, o plano B e o plano C, temos que trabalhar com todos os cenários, e estamos prontos para qualquer um.

Teríamos muito mais investimento, muito mais tecnologia e muito mais opções se tivéssemos um planejamento claro de médio e longo prazos, previsibilidade. Quem acaba pagando essa conta é o mercado consumidor.

Se você definir a regra do jogo, nós vamos investir no Brasil, vamos ter dez carros em três anos aqui.

A isenção que existe no Imposto de Importação está ligada a não haver um carro nacional similar. Na hora em que houver, será natural que se tenha esse controle, essa barreira alfandegária.

A complementação sempre vai ocorrer nos segmentos que são mais de nicho, de menor escala. Esses vão ser importados.

Folha – Em relação a exportações, como a GWM vê as possibilidades? A empresa pensa apenas no mercado da América Latina ou tem ambições de enviar os carros nacionais para Europa e África, por exemplo?

Oswaldo Ramos – O Brasil realmente é uma plataforma para a América Latina e temos até uma demanda interessante, podendo passar para a América Central. Mas o país pode ser protagonista em novas energias, e a nossa visão de longo prazo vai muito além dos produtos que vamos lançar no ano que vem.

O híbrido fica mais eficiente se é flex. Temos essa tecnologia, temos como desenvolver o software do Brasil, temos empresas especializadas, temos engenharia, temos o que exportar.

Já o carro 100% elétrico envolve as fontes de energia que o Brasil está trabalhando, seja eólica, seja fotovoltaica. Ou seja, o país também tem protagonismo no carro elétrico.

Olhando a longo prazo, o Brasil pode, sim, ser um polo não só de produção de hidrogênio verde, mas de produção de veículos movidos a esse combustível.

Folha – Por quê?

Oswaldo Ramos – O Brasil é um país em que o transporte da maioria das mercadorias é feito por rodovias, não temos ferrovias aqui. Essa ausência é suprida com caminhões, que é onde o ecossistema de hidrogênio se paga primeiro, porque se elimina o peso da bateria [de um caminhão elétrico].

Temos dentro da nossa holding a FTXT, que já tem rotas de caminhões na matriz utilizando hidrogênio. O Brasil tem que olhar no longo prazo, ter estratégia e ver qual é o nosso papel para sermos protagonistas.

Folha – A empresa pensa em também atuar no segmento de veículos pesados no mercado brasileiro?

Oswaldo Ramos – Hoje a GWM fornece as células de hidrogênio [para caminhões] e seus reatores para três montadoras parceiras. Ou seja, somos tanto fornecedores como podemos ser fabricantes no futuro.

Folha – Sobre o retorno dos carros populares: a GWM tem interesse de entrar nesse segmento no mercado nacional?

Oswaldo Ramos – Desde o início, o DNA das marcas que compõem a GWM são SUVs e picapes, e vamos ser fiéis a isso. É a nossa expertise, vamos dar continuidade nesse projeto.

Se houver espaço para outros nichos viáveis no Brasil, poderemos, sim, analisar. Mas o plano de hoje é a continuidade em picapes e SUVs.

Folha – O que a equipe brasileira tem feito para esclarecer aos chineses as mudanças de regras que ocorrem no Brasil?

Oswaldo Ramos – Trabalho há três décadas na indústria automobilística, lidei com várias culturas diferentes. A GWM tem uma cultura extremamente curiosa, perguntando e querendo entender.

Na maioria das culturas, o que é bom na matriz tem que ser bom para a filial, e não se tem muita voz como Brasil. Mas aqui está acontecendo exatamente o oposto.

Fizemos um carro de brasileiros para brasileiros, usando a melhor tecnologia que tínhamos lá na matriz. Eu acredito muito que, quando se fazem as coisas orientadas para o mercado, o destino é o sucesso.

Mas toda essa discussão existe, os chineses perguntam muito e, como eu disse, é preciso investir um tempo extra no Brasil e fazer o plano A, o plano B e o plano C, porque os cenários podem mudar.

É um trabalho grande explicar que o país tem mudanças de curto prazo. Neste momento em que temos um governo muito recente, se abre novamente uma janela.

Eu não estou dizendo que não havia conversa com o governo anterior, eu estou dizendo que a área industrial tem uma interlocução aparentemente melhor agora.

Folha – Parece que a GWM tem conversado muito com Brasília.

Oswaldo Ramos – A reindustrialização do Brasil é um esforço coletivo. Isso independe do momento político e do ciclo econômico. Nós compramos a fábrica da Mercedes no ciclo anterior, tomamos a decisão de investimento independentemente do governo.

É muito bom, sim, ter uma interlocução. Muito antes de falar “vamos brecar a importação”, falar “como nós vamos viabilizar a produção local?”.

Há uma revolução acontecendo lá fora, e o Brasil está assistindo de longe. Nós precisamos trazer essas novas tecnologias, e não é com soluções antigas que o país vai ganhar escala. Não adianta voltar ao passado.

Folha – Será que daqui a dez anos veremos montadoras chinesas no top 5 das marcas mais vendidas do Brasil?Oswaldo Ramos – Independentemente da nacionalidade, enxergamos que vai sobreviver quem olhar para o mercado, quem olhar para o consumidor.

Se, como já ocorreu algumas vezes no passado, os chineses tentarem chegar aproveitando a oportunidade do Imposto de Importação, uma taxa de câmbio favorável ou uma sobra de produção, isso não vai dar certo.

E não dá certo para chinês, não dá certo para americano, não dá certo para europeu. Se alguém tentar empurrar a tecnologia que está sobrando na matriz para cá, isso não se sustenta.

E quando vai chegar o carro 100% elétrico nacional da GWM?

Oswaldo Ramos – O 100% elétrico ainda é um nicho, e não há escala para produzir no Brasil. É aquela discussão que tivemos anteriormente.

É por isso que a importação vem primeiro, para criar o mercado e a infraestrutura. Quando isso acontecer, haverá escala para se produzir no Brasil.

O ponto é: entendemos que o híbrido flex é muito bom para quem roda longas distâncias sem acesso a um carregador. Já o híbrido plug-in é excelente para o dia a dia na cidade e, no fim de semana, permite fazer percursos maiores. Ele é flexível para os dois ambientes.

Na outra ponta temos o carro 100% elétrico, ideal para quem só roda na cidade. Mas é a tendência, vai acontecer.

Esse nicho vai virar segmento, por isso é importante começarmos a oferecer esses produtos com uma visão de longo prazo. A nacionalização é uma questão de escala, de volume.

Raio-X

Oswaldo Ramos, 56

Chefe da área comercial da montadora chinesa GWM, trabalhou por mais de 30 anos na Ford e teve passagem pela Peugeot. É formado em engenharia de produção pela Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo).

EDUARDO SODRÉ / Folhapress

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