SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Itamar Vieira Junior dá a entrevista sobre o lançamento de seu segundo romance, “Salvar o Fogo”, direto do Japão. Ele voltaria nesta sexta-feira de uma turnê para divulgar “Torto Arado” por lá e o fato de ter encontrado no outro extremo do planeta um leitorado fiel e interessado em seu livro já dá uma ideia de seu alcance.
A versão nipônica da história de Bibiana e Belonísia é mais uma entre 25 edições que o livro já teve pelo mundo. Essa exposição toda, confessa o autor, o deixa meio desconfortável. “Eu que sou muito discreto, que gosto de tranquilidade. É um pouco estranho.”
A Todavia, editora que o publica por aqui, montou uma operação de guerra para o novo livro de seu autor de maior sucesso já foram vendidas superlativas 700 mil cópias de “Torto Arado”, que levou prêmios como Jabuti e Oceanos.
A pré-venda de “Salvar o Fogo” já passa de 37 mil exemplares. Haverá eventos de lançamento em nove capitais, da Salvador natal do escritor a Fortaleza, Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Recife e Belo Horizonte. Em São Paulo, sua conversa com a pesquisadora Rosane Borges será acompanhada de uma performance da cantora
Luedji Luna, num evento apoiado por esta Folha de S.Paulo , da qual Vieira Junior é colunista. Ele já está confirmado, além disso, na Feira do Livro que acontece em junho no Pacaembu.
São frutos do que ele plantou em “Torto Arado”. Não surpreende, portanto, que o romance que acaba de cair da árvore tenha tanta proximidade com aquele livro na verdade, a ligação é tão umbilical que personagens centrais de lá voltam a aparecer agora.
“Cheguei ao fim daquela história e percebi que não tinha contado tudo o que queria. Podia continuar a escrever e nunca terminar”, diz. Decidiu então fechar o livro como uma etapa, sem se divorciar do interesse em pensar a relação daqueles mesmos homens e mulheres com a terra de onde saem suas raízes.
É como se “Salvar o Fogo” fosse a dança de um mesmo ritmo num compasso diferente. Ainda é uma trama carregada de heranças da cultura afro-brasileira e das chagas do escravismo numa pequena cidade baiana, contada por diferentes narradores que se revezam por capítulo.
Mas agora quem toma a palavra é uma família que vive à beira do rio Paraguaçu, numa vila rural dominada pelos
católicos de um mosteiro desde tempos imemoriais e que, ao longo da obra, passa ao mando de “homens de quem não se tinha notícia, apoiados pelos que não se importavam com vivalma na aldeia”.
É a impessoalidade do capitalismo latifundiário, um fantasma sem nome que antagoniza os personagens daquele povoado às margens do Estado. Políticos, diz o texto, só apareciam por ali em ano de eleição “para prometer mundos e fundos” a caridade governamental da vez, que “corria de boca em boca” durante o romance, era consertar os dentes dos pobres.
“Aquela história começa em meados dos anos 1960, o Brasil vivia uma ditadura militar”, afirma Vieira Junior. “Isso não surge na boca das personagens em nenhum momento, porque não faz diferença para a vida delas, ou elas não têm consciência de que faz. Para muitas pessoas que vivem em lugares mais remotos, pouco importa quem está no poder, porque o Estado não chega ou custa muito a chegar.”
É uma dureza que se reflete na personalidade daquelas figuras. Numa passagem inspirada, uma mulher se vê arrasada por uma notícia, mas não chora de jeito nenhum. “Os olhos estavam secos porque foram moldados no barro.”
Questões odontológicas também surgem de outra maneira em “Salvar o Fogo”. Os dentes de Luzia, irmã mais velha e alquebrada da família, começam todos a cair a certa altura, e a solução surge na seiva de uma planta, conforme ensinamentos ancestrais revelados à personagem. É uma demonstração de que a religiosidade que guia a história ambientada à sombra de uma igreja e ao arbítrio de padres não segue a tradição branca.
Vieira Junior lembra que a primeira coisa que a colonização portuguesa fez no Brasil foi fincar uma cruz no chão, sem se preocupar com o modo como os povos dessas terras lidavam com o sagrado. “Da mesma forma, em Tapera do Paraguaçu, aquela igreja governa a vida das pessoas há muito tempo, mas parece que há algo que sobrevive a isso.”
Dá para entender que é esse o fogo a ser salvo no nome do livro. Numa cena que rima com a memorável abertura de “Torto Arado”, o menino Moisés vê Luzia, acusada pela comunidade de feitiçaria macabra, apagar madeira em brasa, a levando num átimo à boca.
Ao longo do romance, o fogo é marcado pela ambiguidade. É a ferramenta de destruição dos coronéis donos da terra, mas também a chama que aquece a família sertaneja. Como diz o escritor, é um elemento que “abriga o bem e o mal, assim como nós”.
Ou, citando o texto, “embora os homens brancos dominem o fogo e disponham de tacapes que lançam chamas, não podem ser xamãs, por sempre demonstrarem medo diante do desconhecido”.
Algo que diferencia este romance de “Torto Arado” é a influência mais pronunciada das culturas indígenas, mais evidente conforme “Salvar o Fogo” se encaminha para o final uma chave para a leitura do romance está nos agradecimentos, quando o autor acena a uma amiga que o
ensinou sobre “os pressupostos da vingança tupinambá”.
O autor, no limite, propõe a refundação da narrativa brasileira sob novos pressupostos vista pelos que foram, até aqui, vencidos em vez de vencedores na perspectiva histórica, confiante de que hoje estamos mais dispostos “a olhar o nosso passado de maneira honesta, coisa que talvez nunca tenhamos feito”.
Itamar Vieira Junior acaba de ir ao Japão apresentar “Torto Arado”, e não há como percorrer distância maior no mundo. A viagem que segue propondo na literatura não faz o leitor sair do lugar o que não quer dizer que seja menor.
SALVAR O FOGO
Autor: Itamar Vieira Junior.
Ed.: Todavia. R$ 76,90 (320 págs.); R$ 49,90 (ebook)
Lançamento no Centro Cultural São Paulo em 4 de maio, às 19h, com retirada de ingressos gratuitos a partir da quarta (26) pelo site do local
WALTER PORTO / Folhapress