Kraftwerk entrega show filosófico no Rio e reitera que computadores fazem arte

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Ralf Hütter, único integrante remanescente do Kraftwerk desde a sua fundação, não gosta do termo “inteligência artificial”. “Eu prefiro chamar de inteligência artística”, diz, com um sorriso no rosto, em conversa no camarim minutos depois de sua apresentação no Rio de Janeiro, nesta quinta-feira, como atração do C6 Fest. O grupo, que faz show neste sábado no Auditório Ibirapuera dentro da programação do festival, traz para o Brasil sua nova turnê.

Líder do grupo pioneiro no uso da eletrônica e dos computadores na música pop, Hütter vê a inteligência artificial como uma realidade inescapável no trabalho do grupo. “Claro que temos que trabalhar com isso”, afirma.

“Já usamos nos shows um recurso que é improvisar sobre sons que se dão ao acaso. A música vem para nós através da máquina e nós respondemos a isso. É a raiz da palavra ‘composição’, que é encaixar coisas. É o que sempre nos interessou em termos visuais, na hora de escrevermos as letras, de explorarmos a fonética da língua, de buscar a linguagem sintética dos computadores.”

A fala de Hütter propondo chamar inteligência artificial de “inteligência artística” ecoa o verso de Fred 04 famoso na voz de Chico Science, “computadores fazem arte”. Uma coincidência que, ao acaso, ilustra certa afinidade ou conexão com o Brasil -uma história que passa pelos subúrbios cariocas onde, no início dos anos 1980, gênese dos bailes funk, se ouvia músicas como “Boing Boom Tschak” e “Trans Europe Express”, ambas presentes no roteiro do show.

“Sim, ‘Trans Europe Express’ chegou ao Brasil pelo (Afrika) Bambaataa, pelo hip hop”, lembra Hütter. Ele identifica certa conexão entre a música do Kraftwerk e o Brasil, mas a atribui a algo anterior às nacionalidades.

“É da própria dinâmica das máquinas, da alma das máquinas às quais nós todos estamos conectados. Isso é global. É alemão, claro, nossa língua materna é essa. Mas a música é uma linguagem universal, que não precisa ser traduzida e é entendida no mundo inteiro. Esse tipo de música, eletrônica, usa ritmos que são básicos em todas as tradições do mundo, que vêm da dança, do canto.”

Das passagens pelo Brasil, ele recorda especialmente do show que fizeram em 2012, na praça da Apoteose. O lugar combina a arquitetura futurista -“É de Niemeyer, não é?”, reconhece o ex-estudante de arquitetura– e as favelas do entorno, além de ser um dos símbolos maiores do samba. “Do palco víamos os morros e uma avenida enorme”, conta, referindo-se à Marquês de Sapucaí. “Na Alemanha sempre assistimos ao carnaval do Rio no jornal, com milhões de pessoas assim”, diz, sacudindo os braços emulando movimentos do samba.

No palco do Vivo Rio, onde se apresentou na quinta-feira, o Kraftwerk fez seu pouso no Brasil -um voo ilustrado no telão na reta inicial do show. Enquanto o quarteto tocava “Spacelab”, se via a imagem de um disco voador similar aos de filmes de ficção dos anos 1950 se aproximando da Terra, até que o Rio de Janeiro apareceu marcado no mapa.

O público reagiu calorosamente ao ver sua cidade no telão e se reconhecer como destino da nave do Kraftwerk. Uma plateia numerosa, apesar de os ingressos não terem esgotado -havia 3.370 pessoas na casa, quando a lotação era de 3.600.

No show, o grupo reafirmou com maestria o porquê de ser considerado muitas vezes tão influente quanto os Beatles. Para além da força de hits como “The Model” ou “The Robots”, timbres e padrões rítmicos desenvolvidos por eles estão presentes hoje no pop mais dançante, na vanguarda do hip hop e nas muitas músicas de periferia espalhadas pelo mundo, do qual o funk carioca é apenas um representante.

Além do apelo ao corpo, inegável na música do Kraftwerk a despeito da característica imobilidade do quarteto durante o show, o grupo também fala à mente. Sua obra propõe uma reflexão filosófica, em forma e conteúdo, sobre o lugar do homem no mundo a partir da máquina. É interessante notar, por exemplo, como “Computer Love”, de 1981, antecipava questões afetivas agora patentes nas redes sociais e aplicativos de relacionamento.

Isso se dá talvez por Hütter e seu grupo sempre terem tratado a música pop com ambições mais elevadas do que simplesmente tocar no rádio. “Estamos muito conectados com o mundo da arte”, diz o músico. “Tocamos no MoMa de Nova York, em diferentes museus em Paris, Londres. Ficamos à vontade nesses lugares.”

Ao ouvir que o caráter universal de sua música se explica em alguma medida pelo fato de o coração, comum a todos, ser de certa forma uma máquina de ritmo, Hütter concorda e reitera seu olhar filosófico. Faz uma pausa e traça um paralelo com a ideia de um loop, um fragmento sonoro que se repete indefinidamente. “Quando ele para, é o fim.”

LEONARDO LICHOTE / Folhapress

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