Bienal de Charjah tenta com a negritude colar os cacos de um mundo estilhaçado

CHARJAH, EMIRADOS ÁRABES UNIDOS (FOLHAPRESS) – Na vitrine de uma esquina poeirenta, estranhos tubos metálicos sopram o canto de pássaros, como se os bichos estivessem enjaulados nas engrenagens. Mas o que enreda a melodia, na obra da artista indiana Reena Saini Kallat, são as duras fronteiras que separam os países.

Ela replicou radares de zonas de guerra e montou as peças como uma série de esculturas metálicas. O endereço da obra é o velho saguão de um banco abandonado transformado em galeria de arte em Charjah, o emirado menos extravagante vizinho a Dubai.

Uma das peças centrais da atual Bienal de Charjah, a mostra de arte contemporânea mais importante do Oriente Médio, tem ares monetizados de um salão do automóvel, com muito metal à prova de bala exibido com pompa na vitrine de uma das vias estorricadas e sonolentas daqui, como todas parecem ser até a hora do estridente chamado à reza trovejar dos minaretes das mesquitas.

Mais sutis, os pássaros mecânicos da artista não são aves aleatórias. Os alto-falantes bélicos têm como solistas os bichos que representam países em conflito aberto ou velado.

A obra cria duetos de vozes com espécies dos Estados Unidos e do México, num dos casos, de Israel e da Palestina, noutro, da Índia e do Paquistão, mais perto do coração da artista, num terceiro momento da obra. Kallat, é evidente, deseja que a paz desafie o caos em campo minado e que a harmonia resista a abalos.

É bela a ideia –e ao mesmo tempo ingênua. Todo o mundo ao redor dos Emirados Árabes Unidos, da tensão constante na região à Guerra da Ucrânia, mostra que a dissonância total ainda é a trilha sonora trepidante do globo e, tudo indica, será difícil virar o disco.

Montada em barris de dinheiro, a Bienal de Charjah, empreitada estatal encabeçada por Hoor Al Qasimi, a filha do emir e uma das figuras mais influentes da arte, ocupa uma posição difícil.

É um centro de arte que se esforça para ser avant-garde e estar em sintonia com o “wokeism” das pautas identitárias que varrem o mundo, mas têm suas raízes numa ditadura autoritária.

Polêmicas circunstâncias à parte, este é um projeto em grande parte póstumo. O autor, o nigeriano Okwui Enwezor, um dos homens mais influentes na história da arte da metade do século 20 em diante, morreu antes de pôr de pé o que teria sido a sua Bienal de Charjah, isso depois de ter liderado a mostra de Veneza numa de suas encarnações mais radicais.

E os atropelos na ausência do autor, cometidos por Qasimi, são evidentes, ainda mais para quem viu a contundente montagem italiana dele. Enwezor, em sintonia absoluta com os tempos em que viveu, não seria condescendente com o excesso de pintura rasa e inútil que prevalece na atual edição da mostra.

O poder de fogo está ausente, talvez até mesmo porque tudo passou por um filtro. Há trabalhos de fôlego, como as instalações da libanesa Mona Hatoum, que criou um labirinto esquelético de metal a partir das estruturas de beliches de um presídio, ou do indiano Vivan Sundaram, que transformou o corpo em território de batalha com colagens viscerais de imagens de mulheres, a pele encarniçada como os continentes atravessados pela guerra.

Hatoum, num trabalho que contraria a potência habitual de suas obras, ainda arrisca um ataque bobo ao contexto das peças agora debaixo dos holofotes. Do lado de fora de seu presídio espinhoso, barris de petróleo cortados à faca se transformam em silhuetas de plantas desérticas ameaçadas de extinção. Lindo, não fosse todo o contexto ao redor movido a toneladas de petrodólares.

Tudo, aliás, parece abstrato demais quando deveria, as obras sugerem, estar em carne viva. Hoor Al Qasimi, sem dúvida, entendeu bem o projeto agora ressuscitado de Okwui Enwezor, mas as amarras são evidentes –e esvaziam seus propósitos estéticos.

É verdade que a queniana Wangechi Mutu, uma das artistas mais incensadas da atualidade, ganhou o palco principal da mostra, um dos pátios abertos dos palácios à beira-mar no golfo Pérsico mastigado por plataformas de petróleo, mas sua obra é inócua.

Se a instalação de tecido que lembra cordas desfeitas, alusão ao corpo tão inerte quanto pulsante de uma mulher grávida, resulta em playground para crianças que se arriscam a brincar no sol sempre escaldante de Charjah, as esculturas de mulheres ressequidas, quase mortas, ao redor daquela que transborda vida, são nada mais do que restos mortais na penumbra, carcaças esquecidas longe da luz solar.

O resultado é maçante, irregular e repetitivo. Obra atrás de obra trata do estado em frangalhos do mundo, países fratricidas, guerras intestinas, fronteiras faiscantes. O deslocamento forçado, na narrativa das obras, é um drama incontornável dos nossos tempos.

E também o racismo. Na execução do projeto de Enwezor, não faltam artistas negros que atacam contextos racistas nos Estados Unidos e na Europa. O britânico Kimathi Donkor, que já esteve na Bienal de São Paulo, flerta com a linguagem dos quadrinhos em pinturas cheias de ação que terminam –sempre– com a morte de um negro ou imigrante. O brasileiro Jean Charles de Menezes, executado pela polícia de Londres, aparece numa das telas.

Outra pintora, a americana Thenjiwe Niki Nkosi retrata figuras negras históricas em suas telas, rostos contra fundos coloridos neutros, atingindo o estranho efeito de um álbum de figurinhas. Mais documental no registro, o fotojornalista japonês Hiroji Kubota tem na mostra retratos marcantes das figuras centrais na formação dos Panteras Negras.

Nada nesta seara, no entanto, faz sombra sobre a monumental instalação do britânico Isaac Julien, que imagina a correspondência entre o filósofo negro Alain Locke e o colecionador de arte africana Albert Barnes numa sala de espelhos, espécie de museu feito boate, em que esculturas africanas despontam na penumbra, algumas delas petrificadas em blocos maciços de resina, como que mortas ou congeladas em ação.

O mesmo efeito de encarceramento do corpo está numa série que serve de contraponto à celebração desses personagens históricos, embaixadores globais da negritude. São os vultos borrados e desfocados das fotografias da francesa Mame Diarra-Niang, em que o corpo negro perde a subjetividade e se reduz a uma mancha de cor diante da lente.

Este efeito é outro leitmotiv potente da mostra, em que o documental mais perto da raiz do ofício parece ao mesmo tempo surreal, o retrato de uma realidade tão perturbadora que esbarra com a mais fantasiosa ficção.

É o caso das fotografias da iraniana Solmaz Daryani, que retrata um lago de seu país asfixiado pela seca. Ou da marroquina Imane Djamil, fotógrafa de cenas no deserto do Saara que lembram o teatro do absurdo.

O mundo atual, parece revelar a Bienal de Charjah, reflete este estado alterado de coisas, a realidade mais crua refletida num espelho quebrado. Talvez por isso sejam tantas as distorções também aparentes na mostra, que triunfa e naufraga em igual medida na tentativa de colar os cacos de um globo estilhaçado.

SILAS MARTÍ / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS