CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – É curioso que Carol Duarte esteja de volta ao Festival de Cannes justamente num ano em que Karim Aïnouz também esteja com um novo projeto no evento. A última aparição da atriz paulista na Riviera Francesa, afinal, foi sob a direção do cearense, em “A Vida Invisível”, que ganhou a mostra Um Certo Olhar de 2019.
Agora, os dois subiram de nível para a competição oficial de longas, que distribui a Palma de Ouro. Ele, na direção do britânico “Firebrand”. Ela, como estrela do italiano “La Chimera”. Ambos em seus primeiros trabalhos internacionais.
Em “La Chimera”, Duarte interpreta uma brasileira apelidada de Itália. Em italiano ou português, ela divide a cena com Josh O’Connor, este inglês, transformando o filme numa verdadeira Torre de Babel, na qual se ouve ainda francês. Completam o elenco Isabella Rossellini e Alba Rohrwacher, irmã da diretora.
Dirigido por Alice Rohrwacher, que já ganhou os prêmios do júri, por “As Maravilhas”, e de roteiro, por “Feliz como Lázaro”, o novo filme retorna ao humor pueril da italiana, que tem costume de brincar com a fantasia. É terreno fértil para Duarte, com sua personagem inocente e divertida, que não se abala pela vida precária que leva, como aluna e cuidadora de uma idosa que mora num palacete decrépito, cheio de goteiras.
Apenas em seu segundo longa-metragem, Duarte conta que fez um teste para o papel por videoconferência. Rohrwacher havia justamente visto “A Vida Invisível” e a convidou para tentar a vaga, apesar de não estar à procura de uma brasileira, especificamente. A diretora gostou do que viu e, duas semanas depois, ambas estavam juntas para começar as gravações.
Duarte já falava um pouco de italiano, língua materna de sua companheira, e a sogra, professora do idioma, a ajudou a aperfeiçoar a fala.
“No início, até entender, foi difícil. Em cena, existe certa musicalidade e também uma rigidez. Era um texto que precisava estar mastigado para poder fluir em cena, o que é muito mais difícil em outra língua”, diz ela diante da piscina contornada por mosaicos do hotel Le Majestic, onde a equipe está hospedada.
“La Chimera” e “A Vida Invisível” se aproximam, ela observa, para além de sua própria presença. Ambos lançam um olhar sensível e melancólico para os dilemas de seus personagens. E os dela, nos dois trabalhos, tiveram o privilégio de estarem próximos de veteranas de renome -na Itália, de Rossellini, e no Brasil, de Fernanda Montenegro.
E, curiosamente, O’Connor, de quem Duarte ficou muito amiga, se tornou outro ponto de contato nesta semana, ao ser anunciado como protagonista do próximo filme de Aïnouz, “Rosebushpruning”.
Em “La Chimera”, a personagem da brasileira aparece para se contrapor ao de O’Connor, este já endurecido pela vida e com cara de poucos amigos desde que voltou da cadeia. Arqueólogo, ele foi preso por comandar uma gangue que arromba túmulos antigos para vender os artefatos históricos enterrados juntos dos corpos.
Na região entre a Toscana e a Úmbria, onde o filme se passa, não faltam riquezas sepultadas pelos etruscos séculos atrás. O protagonista as encontra graças a uma intuição apurada, como um superpoder, que confere à trama certo realismo fantástico à italiana, como nos trabalhos anteriores de Rohrwacher.
O visual vintage -não simplesmente de época, porque há certo anacronismo elegantemente decadente nos cenários e figurinos- volta com força, bem como a miséria capturada pelo olhar lúdico, não condescendente que Rohrwacher mostrou mais recentemente no gracioso curta infantil “Le Pupille”.
São vários os temas e características reciclados, mas a favor de uma trama que respira frescor. É central, por exemplo, a questão da passagem do tempo, também abordada em “Feliz como Lázaro”.
Os embates morais e pessoais do protagonista abrem discussões interessantes sobre passado, no qual ele parece estar preso, e futuro, que não consegue imaginar até conhecer a personagem de Duarte.
Com “La Chimera”, Rohrwacher reforça que tem um dos cinemas mais inventivos de uma nova geração de cineastas europeus, embalando seus filmes como brincadeiras infantis que disfarçam o lado sombrio de seus personagens e os contextos trágicos nos quais vivem.
“Ela tem um cinema muito particular, não existe outra Alice. É uma linguagem muito específica, sendo dramática sem ser dramática, cômica sem ser cômica. A gente esteve sempre numa linha tênue”, diz Duarte
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress