SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Rita Lee, morta nesta segunda-feira (8) aos 75 anos, contou detalhes íntimos de sua trajetória em “Uma Autobiografia”, livro lançado em 2016. Ela também escreveu títulos infantis, de contos e livros de poemas ilustrados por Laerte. Mas a cantora também deixou um livro pronto, “Outra Autobiografia”, anunciado neste ano e com lançamento marcado para 22 de maio.
O livro que segue fazendo sucesso na pré-venda teve alguns trechos revelados com antecedência pelo jornal O Globo nesta terça-feira (9). A publicação vai se concentrar em histórias de Rita dos últimos anos de sua vida, quando descobriu um câncer de pulmão, passou por tratamentos quimioterápicos até a doença entrar em remissão.
O novo livro compila memórias da artistas desde quando ela descobriu o tumor, em abril de 2021, quase que por acaso, passando por impressões sobre a comida de hospital com um patê de grão-de-bico com “gosto de parede” e sobre a experiência de ter de usar turbante, após perder cabelo em decorrência dos tratamentos. Sem franja, ela diz, se sentia pelada no meio da Avenida Paulista.
Leia abaixo trechos da obra.
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A DESCOBERTA DO TUMOR
“Até então, imaginava que fosse voltar para casa naquele mesmo dia; devia ser uma bronquite e um remedinho daria conta de me deixar nos trinques. Mas fui comunicada pelo dr. Ribas de que poderia ser uma de três coisas: fungo, tuberculose ou câncer. A massa, como eles se referiam ao troço, precisava ser mais bem investigada para fecharem o diagnóstico e terem mais detalhes. Era preciso que eu fizesse naquela mesma tarde uma tomografia com contraste para buscar sinais de metástase. Foi dra. Estelita que, com toda a calma, delicadeza e seriedade do mundo, me disse que eu estava com um câncer de 20 centímetros de perímetro no pulmão esquerdo e que apenas uma biópsia em alguns pontos revelaria o tipo de células cancerígenas, que eu faria no dia seguinte. Para tanto, eu deveria ser internada e depois, quem sabe, voltaria para casa.”
ENFERMEIRA APELIDADA DE SININHO
“Vez ou outra, durante as primeiras horas do dia, entrava no meu quarto uma auxiliar de enfermagem, que devia ter menos de um metro e meio, com um rostinho sereno e bonito, um rabo de cavalo até a cintura, supermagrinha. (…) Me contou que nasceu com os órgãos internos invertidos! Coração do lado direito, fígado do lado esquerdo, canhota e assim por diante. Parecia uma fadinha se comparada às outras enfermeiras, todas altas e fortes, mas era ágil e sempre me oferecia palavras de conforto com sua voz de criança. A apelidei de Sininho.”
COMIDA DE HOSPITAL COM GOSTO DE PAREDE E CAL
“Uma das nutricionistas veio me falar sobre alimentação e me disse que veganismo era sua especialidade. Pensei ter encontrado a grande solução para ganhar peso. Qual não foi minha decepção quando provei o patê de grão-de-bico congelado que tinha gosto de parede; depois provei a sopa de couve-flor que tinha gosto de cal; e, por fim, provei a sobremesa de pera assada que tinha gosto de nada. Aqui não abriria o apetite nem do João Gordo. Mas… bastava lembrar da sonda nasal que eu comia a gororoba falsamente sorrindo. (…) Ainda me alimento sem fome, mas consegui engordar mais um quilo, o que me deixou feliz porque dá uma esticadinha geral na pele do corpo e mostra uma caveira cujo sonho de consumo é engordar nove quilos.”
ÓCIO CRIATIVO, MAS PREGUIÇOSO
“Em casa, a vida era um ócio, um ócio criativo, mas preguiçoso. Minha ansiedade para retornar a escrever, ler, ver TV e levar uma vida como se nada houvesse não durava muito na bonança porque logo vinha a tempestade de um pânico, o que fazia que Rob, Juca e enfermeira A viessem me socorrer. Quando passava a crise, eu morria de vergonha por ter me mostrado tão descontrolada. (…) Por outro lado, aquela paparicação com que me tratavam o dia inteiro me fazia me sentir uma bonequinha de luxo, e eu já estava me tornando uma pequena tirana: Estou com sede, e lá vinham todos trazendo suco e água… Todo aquele cuidado inédito da minha família para comigo me fez aos poucos concluir que eu realmente era querida por ela e que por isso faria de tudo para que fosse curada.”
A QUEDA DE CABELO
“Voltei ao hospital para o segundo ciclo de químio, que foi praticamente igual ao primeiro. Para fugir daquela cena manjada de passar a mão na cabeça e tirar tufos inteiros de cabelo além de entupir o ralo , resolvi não dar esse gostinho para o previsível e passei máquina zero, encarando a feiura de parecer uma vampira. Com cabelo eu parecia mais com minha mãe, careca fiquei a cara do meu pai. (…) Dane-se o visual, entrar no banheiro e receber uma cachoeira de água quente na cabeça e cerimoniais de cura com ervas, esse prazer era impagável, e eu secava a cabeça em um minuto com a toalha”.
‘GOSTAVA MUITO DE MIJAR EM PÉ’
“Fui aconselhada a não fazer xixi no banho porque depois de químio e imuno o corpo vai eliminando toxinas pelo xixi, e não é legal ter contato direto com ele. E eu gostava muito de mijar em pé.”
‘A MORTE É A ÚNICA VERDADE’
“Algo me diz que tenho escrito muito sobre morte. Aliás, por que há tanta gente que até se benze quando tocamos no assunto? A morte é a única verdade, e cada dia a mais vivido é um dia a menos que se vive. Pra que fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela com humor? Desta vida não escaparemos com vida. (…) A verdade é que eu queria mesmo é ser abduzida por um disco voador e sumir sem maiores explicações”.
SEM A FRANJA, SE SENTIA PELADA
“Ser careca é adotar diferentes hábitos, outros eus dentro de mim, uma pessoa dentro do nosso ego inferior que é a gente mesmo. O mais transformador foi, sem dúvida, ficar pela primeira vez, desde que nasci, sem franja, que é a mesma sensação de estar pelada no meio da Avenida Paulista e todos rirem de mim. Como estou trabalhando para me transformar numa velhinha fofa, procuro todo dia adotar uma personagem esquisita, tipo uma baronesa exótica que não abre mão de uma leve maquiagem para um up no esqueleto. Usar turbante à la Simone de Beauvoir com um broche grande na frente era imprescindível e, como não fumo mais, adotaria uma bengala para respeitarem meus cabelos brancos.”
VELHICE, EXISTÊNCIA
“Quando digo que me dei conta de estar velha, falo não apenas da aparência, mas principalmente da existência em si. Estou vivendo uma fase especial, cheia de perguntas, e tenho a sensação de estar grávida, de me autoparir feito cobra quando abandona a pele antiga e outra renasce ainda mais poderosa. (…) Vencer um câncer exige foco, coragem e fé e, se conseguir ter bom humor, melhor ainda.”
‘VOU ME CURAR, SIM’
“Ontem, 23 de setembro de 2022, caiu a ficha de que vou passar os próximos anos por conta desse tratamento, e que ele volta e meia vai me obrigar a ir ao hospital para fazer exames de acompanhamento de três em três meses. Minha Pollyanna se antena e joga o Jogo do Contente, pois sempre existe um lado bom: vou me curar, sim. Mas isso não significa que nunca mais algo vá reaparecer.”
O TRATAMENTO
“Dia seguinte de químio, o corpo todo fica dolorido, tipo se eu tivesse lutado com Mike Tyson. A dor em si não é lá essas coisas, mas parece que meus músculos puxaram ferro. De repente, então, bate um segundo de felicidade de estar viva e esqueço que estou doente; é um jorro de luz que me envolve por segundo. Sinto não estar só, e com rabo de olho dá para perceber a presença, mesmo que invisível, da turma da Luz. Quando isso acontece, me sinto a pessoa mais feliz do mundo.”
‘MENINADA, SINTAM-SE BEIJADOS PELA VOVÓ RITA’
“Diria que não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente, que o que é o normal para uma aranha é o caos para uma mosca, que uma coroa não é nada além de um chapéu que deixa entrar água, que todo dia o mundo se afoga no caos e vai ser difícil achar um lugar para observar o fim dos tempos de camarote. Meninada, sintam-se beijados pela vovó Rita.”
OUTRA AUTOBIOGRAFIA
Quando Lançamento em 22 de maio
Preço R$ 69,90 (192 págs.)
Autoria Rita Lee
Editora Globo Livros
Redação / Folhapress