SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Homem-Aranha no Aranhaverso”, a animação de 2018, não foi apenas uma lufada de ar fresco para o mastodôntico gênero dos bonecos de collant, mas provavelmente o longa de animação americano mais importante dos últimos dez anos.
Era uma aposta de risco –mesmo com Homem-Aranha no título– para a divisão de animação da Sony por escantear o convencional Peter Parker, protagonista dos seis filmes anteriormente, em favor de Miles Morales, o jovem birracial que havia estreado nos quadrinhos poucos anos antes. É esse mesmo protagonista que retorna cinco anos depois na continuação “Através do Aranhaverso”.
O filme tenta dar seguimento ao impacto do original, que trouxe uma animação distante da hegemonia Disney e Pixar, com peixes, carros e emoções com perfeita volumetria e oclusão de luz realista.
A primeira aposta deu certo. O filme fez lá seu bilhão de bilheteria mundialmente e todo o meio se viu revigorado ao emular o estilo do longa. Passou a ser viável comercialmente mesclar técnicas da animação 2D e 3D, abraçar influências da animação asiática e aproveitar o movimento frenético para transmitir sensações.
Os realizadores queriam extrapolar o que significava adaptar um quadrinho de super-herói. Balões de diálogo e onomatopeias pululavam na tela. Cores supersaturadas, contrastes duros, linhas e sugestões de forma compunham cenário e personagens. A confusão era tão excitante que o filme tinha um aviso para epilépticos antes do início.
Dar continuidade ao sucesso é missão mais difícil. “Através do Aranhaverso” começa com o púbere Miles Morales precisando conciliar as agruras desta fase da vida com a sua função de herói. Ele falta às aulas, não consegue cumprir compromissos familiares e vive moroso de saudades pela Gwen/Mulher-Aranha de outro universo que conheceu no filme anterior.
Ele quer ser um vigilante mascarado com liberdade e autonomia, desenvolver seus poderes, se formar como herói e pessoa, aproveitar sua independência e desenvolver sua privacidade. Mas uma vocação não é um destino. Sem saber de sua identidade secreta, seus pais temem que sua repentina displicência leve a erros que acabem com sua vida.
Quando Gwen ressurge em uma missão para garantir a manutenção do multiverso, Miles escolhe a aventura no lugar da parcimônia, ignora o ultimato dos seus pais e vai atrás do seu amor. Mas sua investida presença nessa trama pode por todo o mundo em risco.
No caso, todas as diferentes encarnações do personagem –seja nas HQs, no cinema, na TV, em games, xícaras ou camisetas– estão veiculadas a uma série de acontecimentos. A aranha radioativa que pica o adolescente, a perda da figura paterna, a frase “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”, e desrespeitar esse determinismo pode destruir toda a ordem.
O antagonista da vez é Miguel O’Hara, um Homem-Aranha que já tentou subverter o cânone, mas pagou um preço alto por isso e acabou se tornando um guardião do multiverso.
De todos os personagens dos quadrinhos de herói, o Homem-Aranha sempre foi o que mais precisou arcar com perdas e sacrifícios. Stan Lee o criou adolescente por isso. Ritos de amadurecimento são difíceis e inevitáveis. Miles se revolta contra o destino, mas ele não é uma punição.
Quando o filho pródigo da parábola retorna com as mãos abanando depois de ser esmagado pelo mundo, o pai o recebe com amor, mas não porque estava certo –o filho nunca gastou a herança à revelia dele– mas porque, ao retornar, ele volta com maior consciência de si.
O reencontro não é apenas com a família, mas também consigo. Miles precisa decidir se retornará aceitando ou não o que é preciso para amadurecer.
“Através do Aranhaverso” não é um triunfo de estilo como o seu antecessor, suas escolhas têm menos propósito, a execução muitas vezes troncha contrasta com o experimento calculado do primeiro filme, mas garante seu mérito ao discutir a natureza do seu protagonista. Ele pode não servir como novo farol da animação americana, mas já basta como ponto luminoso entre os filmes sobre o Homem-Aranha.
JOÃO MONTANARO / Folhapress