(FOLHAPRESS) – O espetáculo “Vista”, criação da Cia. Polifônica e protagonizado pela atriz Julia Lund, nasce do fascínio gerado no grupo pelo romance “Vista Chinesa” de Tatiana Salem Levy, finalista do prêmio Jabuti em 2022.
O livro narra as várias camadas do trauma causado por um estupro ocorrido no Rio de Janeiro, em 2014, no parque da Tijuca, próximo ao mirante da Vista Chinesa, de onde é possível contemplar a beleza estonteante de uma cidade que, à época, pouco antes das Olimpíadas, parecia anunciar um futuro novo, cheio de vida.
A montagem faz um tributo ao livro de Tatiana Salem, o qual, além de acompanhar num ritmo asfixiante as formas como o crime terrível dilacera e estilhaça corpo, mente, sonhos, desejos da mulher, fala ainda da luta, talvez eterna, para se reerguer, seguir adiante com a memória dessa fratura -cicatriz sempre a ponto de se romper.
Entretanto, a transposição do livro para o palco é tímida demais. A chama acesa pela obra no grupo teatral produz também certa subserviência da cena ao material literário.
O romance é a origem, mas também a bússola e o ponto de chegada da peça: as palavras em cena raramente se afastam das que já foram escritas. As ações da atriz apenas reproduzem ou ilustram o que o texto narra.
Mesmo o conjunto de efeitos teatrais de luz e de vídeo, assim como o acompanhamento musical, executado ao vivo, trabalham sempre a reboque da obra, a produzir atmosfera para uma cena que às vezes se parece com uma leitura pública de recortes selecionados do livro.
A relação entre teatro e literatura não é simples. Transpor para o palco um romance impõe um deslocamento difícil entre linguagens tão diferentes quanto o céu é distante da terra. Em “Vista”, a adaptação é frágil: o teatro não consegue ir além de funcionar como um veículo do romance, a cena apenas replica o que já foi escrito.
Só que todo eco é menos nítido do que o som original. E, não obstante o máximo respeito que o grupo tem pelo livro, neste tipo de relação subserviente, o texto encenado acaba por fazer da obra sempre menos do que ela é.
A necessária síntese, para que a peça seja praticável no tempo médio de um espetáculo, é frustrante e subjetivamente enviesada, como são todos os resumos. Sempre fica algo para trás. Em “Vista”, muito do romance, como, por exemplo, a conexão simbólica entre o trauma e a cidade do Rio de Janeiro, é abandonado em favor da ênfase na intimidade da protagonista.
Também há um jogo estrutural do livro pouco explorado na cena. Tatiana Salem Levy parte de um relato real, o estupro sofrido por sua amiga, a diretora de TV Joana Jabace. No entanto, ela escreve o livro na forma de uma carta, em primeira pessoa: uma mãe tentando explicar aos filhos a dimensão do trauma que sofreu.
A autora conta que levou adiante o projeto somente em 2018, quando engravidou de sua filha. Conta também que sua própria mãe foi estuprada e que em certa ocasião lhe contou o trauma. Assim, “Vista Chinesa” ocupa um lugar intermediário entre a ficção, o relato real e um tipo específico de autoficção no qual ela se coloca no lugar da amiga como se fosse ela mesma.
A transposição teatral da explora pouco este dúplice andamento estrutural da obra, bem como as possibilidades abertas pela inserção de mais um nível neste jogo, o da atriz.
Sem expandir o material literário, isto é, sem fazer dele plataforma para recriação livre e atenta às dinâmicas próprias da linguagem teatral, esse mesmo teatro se transforma num mecanismo de achatamento da obra, que perde várias de suas camadas literárias, sem, contudo, ganhar novas implicações teatrais. O apego excessivo ao romance é um tipo de morte e paralisia de seu potencial em cena.
VISTA
Avaliação Regular
Quando Qui., sex. e sáb., às 20h; dom., às 18h. Até 2/7. Sessão extra na qua. (28), às 20h
Onde Sesc Avenida Paulista – av. Paulista, 119, São Paulo
Preço R$ 30
Classificação 16 anos
Elenco Julia Lund
Direção Luiz Felipe Reis
PAULO BIO TOLEDO / Folhapress