FOLHAPRESS – Numa velha entrevista perguntaram a Jacques Tourneur o que achava dos filmes franceses. Nascido nos EUA e trabalhando sempre em Hollywood, Tourneur era filho de pai francês e, aliás, também cineasta. Ele respondeu que havia uma diferença de ritmo. Nos filmes que fazia, se um personagem saía do carro, ele nem chegava a fechar a porta. Nos filmes franceses, sempre fechava-se a porta.
Existe algo de caricatural na resposta de Tourneur, mas no fundo ele estava se referindo à imensa falta de eficácia dos filmes franceses (pré-nouvelle vague, entenda-se). A entrevista me ocorreu enquanto assistia a “Rio Doce”, primeiro longa-metragem de Fellipe Fernandes.
Nesse filme, se alguém recebe uma visita não basta que abra a porta. É preciso antes buscar a chave, destrancar, tirar o cadeado… Uma série de gestos cotidianos que, em princípio, não têm outra função discernível que não a de atrasar o andamento da cena.
O procedimento se repete quando duas pessoas se encontram. Se cumprimentam, perguntam como a outra tem passado e tal. Palavras insignificantes, que apenas repetem gestos convencionais. Por exemplo, Tiago, protagonista do filme, é encontrado por uma mulher. Ela lhe pergunta se podem conversar. Ele diz que está trabalhando. Ela diz que poderiam marcar um encontro em outro lugar. Combinam algo. Encontram-se depois.
Esse conjunto de gestos e palavras inúteis contraria qualquer regra sobre o papel do diálogo num roteiro: ele tem que levar o filme à frente, não freá-lo. Ao mesmo tempo, esses gestos fazem lembrar certos filmes de Antonioni, em que se trata, exatamente, de trabalhar sobre a insignificância. De buscar o sentido de gestos e palavras insignificantes.
Seria isso o que busca Fernandes? Na verdade, Tiago é introduzido por uma dessas conversas a um drama familiar: descobre que seu pai, que julgava falecido, tinha outra família. Ou seja, ele tem um monte de meias-irmãs. Existe ali quem seja mais acolhedor, mas há também quem lembre que ele pode até ser irmão, mas não é da família. A situação é constrangedora por todos os lados: incluir ou rejeitar? Incluir-se ou excluir-se?
De certa forma, esse encontro desencontrado fará Tiago descobrir a importância da família, dos afetos, da convivência, que parecem estar um tanto ausentes de sua vida. No filme, algumas coisas não têm consequência: a que se liga, por exemplo, a dor nas costas que Tiago sente com insistência? O personagem pode resolver um monte de problemas, mas este fica pelo caminho: será algo físico ou mental?
Seria muito apressado atribuir todos os problemas que se verificam ao longo do filme a um tipo de insuficiência que há anos já não se vê nos filmes brasileiros. Parece mais apropriado discernir, em tudo isso, um projeto: talvez o desejo de captar a vida “tal qual”; ou pelo menos um modo de vida, o de certas pessoas. Suas falas, sua maneira de estabelecer conversas e relacionamentos convencionais e que são modos de evitar aquilo que mais se deseja. Pode-se pensar que “Rio Doce” abre um projeto minimalista.
Se for isso, será preciso, no entanto, admitir que tal projeto ainda se encontra em estado larvar. Há muito o que controlar nos filmes onde pouca coisa acontece, e aqui esse controle não se mostra efetivo, como talvez fosse intenção do diretor-roteirista Fernandes.
A notar, aqui, o rapper Okado do Canal, que interpreta Tiago, o protagonista, numa nota só, a da melancolia. Mas, como no samba que canta João Gilberto, essa única nota é a que dá conta do estado e do ser do personagem. Ao vê-lo pode-se esperar com certa curiosidade que no futuro Fernandes possa nos mostrar seu projeto num estágio mais avançado: “Rio Doce” não é fácil de ver.
RIO DOCE
Crítica Regular
Quando Em cartaz nos cinemas
Classificação 14 anos
Autoria Okado do Canal, Cíntia Lima, Cláudia Santos
Produção Brasil, 2021
Direção Fellipe Fernandes
INÁCIO ARAUJO / Folhapress