SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – João Silvério Trevisan, aos 78 anos, logo descarta que o chamem de senhor. “Essa figura está no céu -eu, por enquanto, estou aqui. Não sei se por muito tempo, mas por enquanto.” Uma amostra de sua tentativa de diálogo franco com a morte.
Ele dá a entrevista em seu apartamento, em meio a fotos com o marido, plantas e pinturas mais e menos eróticas que ganhou de amigos artistas. Em seu novo livro, “Meu Irmão, Eu Mesmo”, Trevisan retrata a via crúcis dividida com seu irmão mais novo Cláudio -ele com HIV, o irmão com câncer.
Segundo livro de uma trilogia iniciada com “Pai, Pai”, sobre seus principais amores -que também estão entre as principais perdas-, “Meu Irmão, Eu Mesmo” foi imaginado ainda no milênio passado. Trevisan queria escrever o livro junto com Cláudio, numa tentativa de comunhão e catarse. Seu irmão, no entanto, nunca se juntou ao projeto.
Para Trevisan, a semente de sua amizade com Cláudio pode ter vindo de uma fimose. Ele estudava em um seminário quando João 23 convocou a cúpula da Igreja Católica para discutir a modernização dos dogmas da religião e tomou decisões que reverberaram por todo o mundo católico.
A instituição adotou uma educação sexual inédita, e Trevisan decidiu apresentar seus novos conhecimentos aos irmãos. Foi então que descobriu o excesso de pele no pênis de Cláudio e o ajudou com isso.
“Eu o amparei. Eu cuidei de uma coisa muito íntima e ele nunca esqueceu. Eu tenho a impressão de que, a partir daí, houve uma perspectiva de amizade. E é provável que ele tenha projetado sobre mim um pouco da figura paterna”, disse, aludindo à dificuldade de crescer com um pai alcoólatra.
A narrativa é coerente com a obra de Trevisan, opositor do pudor e defensor da sensualidade. “Eu tomo o partido da pornografia. Mais que do erotismo, que sempre me parece próximo da autocensura”, afirma.
“Tive uma vida lutando para conquistar meu corpo e o gozo que ele possa me dar e, de repente, sou proibido porque sou pornográfico? Eu me rebelo, não aceito. Se meu olhar precisar ser pornográfico, será.”
Trevisan descreve Cláudio como uma criança chorona e fechada, que parecia querer resguardar seus mistérios. Chegado às letras, começou a vida na engenharia, mas foi parar no mercado livreiro. Homem hétero e mais novo dos irmãos, foi quem melhor acolheu Trevisan, o primogênito, quando revelou sua homossexualidade à família.
Era 1992 e o escritor, na época com 48 anos, estava exausto. Consumido pelas pesquisas para o livro “Ana em Veneza” e pela superação árdua de uma paixão, seu desgaste alcançou a pele através de um surto de herpes.
Na época, ainda mais que hoje, marcas enrubescidas, especialmente para um homem gay e sexualmente ativo, pertenciam a um imaginário de pânico. Com o teste, requerido por seu dermatologista, ficou confirmado que tinha HIV.
No começo, o escritor quis tornar público que era soropositivo, mas foi dissuadido pela família. Trevisan passaria a considerar a decisão acertada ao ver como músicos, escritores e outras figuras antes renegadas passavam a ser veneradas ao se assumirem portadoras do vírus, como se a consciência coletiva tivesse pesado e tentasse se redimir através da exaltação.
A ideia de ser valorizado pela doença, não pela verdadeira qualidade de sua obra, o repelia.
Agora, sentiu que era inevitável tornar a informação pública. “Quando comecei a escrever sobre meu irmão, compreendi que uma coisa não poderia ser abordada sem a outra. E que as duas se uniam para criar esta compreensão das nossas dores se cruzando.”
“Ana em Veneza” estava em véspera de ser publicado quando Cláudio foi diagnosticado com câncer linfático no abdômen, iniciando uma bateria de idas ao hospital, com apelos à espiritualidade e à medicina alternativa.
A revelação impactou o ponto de vista de Trevisan. “Eu era o cara que estava condenado à morte. Não existia nenhum tratamento para a Aids naquele período. Já a doença do meu irmão tinha uma chance alta de cura”, afirma. Em maio de 1996, a realidade desafiou a probabilidade e Cláudio morreu.
A morte do irmão se somou à perda da mãe, no início da vida adulta do escritor, e à do pai, marca sombria mas essencial na sua trajetória. “Eu sobrei. Fui aquele que sobrou, inclusive como testemunha”, diz o escritor.
Ao retomar a história tantos anos depois, Trevisan se perguntou para quem escrevia aquele livro tão sofrido. Mas se convenceu a continuar. “Eu queria falar para as pessoas que essa dor teve uma grande importância na minha vida”.
“A vida é uma coisa maravilhosa, mas é um acúmulo de dores com as quais não nos acostumamos. Vivemos como se fôssemos eternos, tentando postergar o mais possível a consciência da dor que é a morte. Com este livro, eu queria dizer a mim mesmo e a quem me lesse: ‘esquece, não dá mais para postergar nada.”
“Meu Irmão, Eu Mesmo” cumpre ainda mais uma função. Cláudio deixou duas filhas jovens quando morreu e, através do livro do tio, vão poder conhecer mais sobre o pai.
O autor se prepara para escrever a última peça da trilogia, sobre uma paixão, que considera a parte mais dolorosa de todas e que, por isso mesmo, decidiu narrar através da ficção. “São três tipos de amores -o último é amor que eu realmente conquistei, mas que foi um desastre.”
MEU IRMÃO, EU MESMO
Preço R$ 64,90 (256 págs.); R$ 39,90 (ebook)
Autoria João Silvério Trevisan
Editora Alfaguara
DIOGO BACHEGA / Folhapress