SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Jonathan Franzen se tornou, em 2010, o primeiro escritor a estampar a capa da revista Time em mais de uma década. Abaixo de seu rosto compenetrado, havia as palavras: “grande romancista americano”.
Não era apenas um epíteto elogioso, mas uma referência ao conceito de “great American novel”, ou seja, romances de estofo que ambicionavam abarcar a alma dos Estados Unidos. Franzen se encaixaria na descrição porque, na síntese apropriada do texto da Time, seus livros não eram “sobre uma subcultura, mas sobre a cultura”. “Não é um microcosmo; é um cosmo.”
O repórter pergunta, na entrevista feita por Zoom na última sexta-feira, se Franzen mantém essa ambição agora, aos 63 anos. Da cozinha de sua casa em Nova York, ele diz que já tinha desistido dela em algum momento entre o segundo e o terceiro livro.
“Houve uma mudança fundamental, em que me perguntei qual o sentido de representar a totalidade da nossa cultura. E não encontrei uma resposta boa”, afirma. “O que eu gosto de ler, e tento escrever, são histórias complicadas sobre um grupo de personagens. O tamanho dos meus livros tem a ver com minha inabilidade de ficar satisfeito com o ponto de vista de um só personagem e com um só tempo.”
Aquele terceiro livro, por sinal, continua sendo seu mais conhecido: “As Correções”, pelo qual foi indicado ao Pulitzer e venceu o National Book Award em 2001. Ou seja, parece que Franzen faz grandes romances americanos sem querer -e acaba de publicar mais um.
“Encruzilhadas”, como é de costume em seu projeto literário, gira em torno de uma família. É a primeira narrativa de época de Franzen, ambientada num dia próximo ao Natal de 1971, quando colidem as visões de diversos personagens que passam por epifanias.
O pai, Russ, é um pastor caído em desgraça entre o grupo de jovens da igreja local. A mãe, Marion, vê segredos bem enterrados de seu passado entrarem em ponto de fervura. Clem, o filho mais velho, tem uma crise de consciência, decide largar a faculdade e se alistar na Guerra do Vietnã.
Já a recatada Betsy se vê alvoroçada pelos prazeres do sexo, das drogas e do rock’n’roll, equilibrando aleluias e “hare krishnas” como numa música de George Harrison. E o mais novo, Perry, decide abandonar seu modesto empreendimento de traficante para se unir ao grupo religioso que rejeitara seu pai.
O tratamento da experiência religiosa, vale dizer, se destaca no oceano de literatura sobre o assunto. Enquanto escritores liberais como Franzen costumam olhar para os crentes com cinismo ou ironia, ele o faz com respeito notável.
“O Encruzilhadas não parecia uma entidade religiosa -não havia uma Bíblia à vista, e noites inteiras transcorriam sem referência a Jesus Cristo”, escreve um capítulo sobre o grupo de jovens que empresta seu nome ao título do livro. “Simplesmente por tentar falar de forma sincera, render-se à emoção, apoiar outras pessoas na sinceridade e na emoção delas, Becky experimentou seus primeiros lampejos de espiritualidade.”
Ao comentar as razões dessa abordagem, o escritor lembra que, ao pesquisar sobre um grupo de ambientalistas para um artigo jornalístico, se impressionou com a proximidade entre a atitude deles e o cristianismo de sua infância. “Só que, em vez de Deus, ali tem a natureza.”
“Todo o discurso sobre a culpa da humanidade por um mundo em decadência é notavelmente parecido com a cosmologia cristã. ‘Vai haver um dia do julgamento e teremos que pagar por nossos pecados.’ É essa a linguagem dos ativistas do clima.”
Então uma ficha caiu, e Franzen percebeu que, ainda que a pauta do cristianismo tenha sido apropriada pela direita -em suas palavras-, muitas estruturas de pensamentos se repetem entre a militância de esquerda e a religiosa.
“A culpa sobre o que os seres humanos estão fazendo com o planeta ou, entre liberais brancos, a culpa sobre o que o país fez com os descendentes de escravizados negros –tem algo de pecado original aí.”
Não demora para que se percebam significados mais amplos para o título do livro, “Encruzilhadas”. Como explica Russ, o pastor, a música “Crossroads” tinha tomado as rádios na voz de Eric Clapton, então recém-saído da banda Cream, mas na verdade foi composta por Robert Johnson em 1936.
“É um bando de caras da Inglaterra roubando um autêntico mestre do blues negro dos Estados Unidos, fingindo que a música é deles”, diz.
Surge então o debate sobre privilégio -e não é de hoje que a literatura de Franzen pauta a derrocada do homem branco, dessa vez na figura ridícula de Russ, cada vez mais desconectado das sensibilidades da juventude e envolvido em acusações de assédio.
“Já descobri diversas vezes que, quando escrevo personagens que se parecem comigo, rapidamente vira autoflagelação. Faço o pior julgamento possível contra mim”, brinca o autor.
O processo criativo de “Encruzilhadas”, diz ele, foi marcado pela percepção de que muitos dos assuntos que parecem radicalmente contemporâneos já estavam em pauta há meio século. Como um escritor mais velho, considerou importante a tarefa algo didática de mostrar a seus leitores jovens que debates como apropriação cultural já eram discutidos nos anos 1970.
Não é a única vez que Franzen fala sobre estar mais velho durante a entrevista. Ao comentar o fato de seu livro abrir uma trilogia -que ele confessa não saber bem como vai se desenrolar–, afirma ter se obrigado a ter um desafio ambicioso na casa dos 60 anos, uma inconformidade movida seja por sua “megalomania autoral”, seja pela “ética protestante de trabalho” que trouxe de seus pais.
Com a maturidade, veio também uma sensibilidade renovada. Nas críticas a “Encruzilhadas”, muito se notou que este é um livro imerso em calidez e ternura que soam novos para um autor marcado pela mordacidade.
Quando o repórter comenta isso, Franzen faz sua pausa mais longa, de 12 segundos. “Já há uns 20 anos percebo que estou me movendo para longe da raiva e da sátira”, diz, enfim.
Sublinha que não foi um processo consciente. Então, de repente, traz de novo seus pais à tona, lembrando que eram pessoas gentis e amáveis contra quem se rebelou na juventude. A partir dali, sua relação com eles se tornou carregada, algo não resolvido até bem depois da morte de ambos.
“Não acho que seja coincidência que agora eu tenha a idade em que realmente me lembro dos meus pais. Tenho um respeito renovado por eles”, diz, ainda entre pausas. “Sinto que estou, de certa forma, retornando à pessoa que realmente sou.”
ENCRUZILHADAS
Quando Lançamento em 12/5
Preço R$ 159,90 (600 págs.)
Autoria Jonathan Franzen
Editora Companhia das Letras
Tradução Jorio Dauster
WALTER PORTO / Folhapress