Martin Amis soube tratar de geopolítica sem deixar a ficção de lado

BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Eles eram inseparáveis. Ian McEwan, Christopher Hitchens, Salman Rushdie e Martin Amis, morto nesta sexta-feira (19). Com suas obras projetadas principalmente depois dos anos 1980, foram conhecidos por promoveram uma renovação na literatura britânica.

Em épocas em que todos coincidiam em Londres, preparavam jantares apenas entre eles e comentavam as obras uns dos outros, com observações ácidas, muito humor e conversas sobre literatura e política.

Uma vez, visitei Ian McEwan numa tarde de inverno londrina. Ele abriu a porta de sua casa todo paramentado de cozinheiro, com luvas e gorro, o rosto salpicado de farinha. “Desça, desça”, me disse, caminhando para a cozinha, “estamos preparando jantar para os amigos”. Quando me disse que Amis e Hitchens estariam presentes, me surpreendi. Eles tinham acabado de trocar críticas agudas um ao outro por meio de entrevistas.

“Não é incomum que se desatem debates políticos entre nós, mas a amizade nunca se altera”, afirmou McEwan. O embate se havia dado por conta do livro “Koba the Dread”, que Amis lançou em 2002. Na obra, ele ataca o stalinismo como “regime que assassinou o próprio povo” e “instalou um regime de terror”. Amis ainda cutucava Hitchens, a quem chamaria de “simpatizador de Stalin”. Os dois terminaram em abraços, mas sem dar o braço a torcer de suas ideias.

Amis não deixava de mandar torpedos a outros intelectuais também, com sua crítica expressa ao comunismo ou ao relativismo cultural.

Também com o veterano historiador Eric Hobsbawm teria um cruzamento mais forte de ideias, que nunca terminou com um abraço ou aproximação. A polêmica se armou por conta deste mesmo livro, porque Amis acusava Hobsbawm de defer o stalinismo por grande período.

Em resposta a Amis, Hobsbawm afirmou à Folha: “O livro de Amis não propõe uma visão do século 20. Foi escrito por um homem que nunca pensou muito sobre o assunto e não sabia nada sobre ele até recentemente. Não é um livro original e se baseou apenas em literatura de segunda mão. Amis tem pouco entendimento sobre história e sobre a Rússia.”

Quando Amis passou a vir com mais frequência à América do Sul, era num contexto em que suas obras ficcionais mais relevantes já tinham sido lançadas e amplamente elogiadas. Eram elas “The Rachel Papers”, de 1973, “London Fields”, de 1989, “A Informação”, de 1995, entre outros.

A partir dos anos 2000, sem deixar a ficção de lado, passou a dedicar cada vez mais atenção a reflexões sobre importantes temas geopolíticos. Um dos temas que o abalaram muito foi o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001.

Em uma entrevista que deu à Folha em 2004, em São Paulo, antes de seguirem para Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, Amis, McEwan e o americano Paul Auster afirmaram não ser possível, naqueles tempos, não tratar de política em um mundo de tanta transformação.

Amis disse: “Esta é a pior época da história em pelo menos um aspecto. Existe menos inocência. Já surgimos como os ‘não-inocentes’, por pura agregação. Não posso fugir do presente porque meu assunto sempre foi a masculinidade. Hoje vivemos uma nova e selvagem manifestação da masculinidade”.

E agregou: “Tenho tentado pensar no Islã radical, uma manifestação da masculinidade derrotada, e fico interessado pelas mulheres iranianas, pela explosão pela qual estão passando.”

Mas seria o Islã o tema de sua principal polêmica naquela fase. Em 2006, depois de um fracassado atentado a bomba no aeroporto de Heathrow, em Londres, por parte de muçulmanos radicais nascidos no Reino Unido, Amis afirmou que a comunidade muçulmana do país “ainda iria sofrer até colocar a sua casa em ordem”. A frase gerou protestos de outros intelectuais, e Amis se retratou.

Numa outra passagem de sua carreira, passou a tratar do Holocausto, um tema “sobre o qual deveríamos pensar todos os dias”, em suas palavras.

Com o tempo, Amis se afastou um pouco do cenário literário, publicando de modo mais rarefeito. Primeiro, foi morar no Brooklyn, nos Estados Unidos, quando foi vizinho de Christopher Hitchens, também ele vítima de um câncer do esôfago, enfermidade que matou Amis. Também viveu um ano em Princeton e, depois, na praia de José Ignacio, no Uruguai.

Nessa época, quando o entrevistava, buscava provocá-lo em espanhol e ele respondia, cheio de sotaque, dizendo estar aprendendo a cada dia um pouco mais. Ficou dois anos nessa praia, com a mulher, a escritora Isabel Fonseca, que tem ascendência uruguaia.

Ao ser questionado sobre como via a América Latina, Amis dizia que o Uruguai era “o melhor país do mundo”, que via Chile e Colômbia em processo de modernização e que o Brasil, com todos os problemas, “é uma potência em ascensão”, enquanto os argentinos “são destemidos adoradores da corrupção, uns verdadeiros piratas que admiro”. O comentário de mais de duas décadas sobre a região parece válido em muitos aspectos.

Com a morte de Amis e Hitchens e o esfaqueamento de Salman Rushdie num ato terrorista, o grupo de inseparáveis amigos se vê abalado. Serão lembrados individualmente, por suas obras originais, sarcásticas e inteligentes, assim como um grupo que rompeu paradigmas da literatura britânica ao trazer novos temas contemporâneos para os lirvos, como a linguagem comica, a pornografia, o posicionamento político marcado, a ironia, a crítica aguda aos rumos da humanidade. Que a amizade dos restantes mantenha a chama do grupo acesa.

SYLVIA COLOMBO / Folhapress

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