BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Ministério da Fazenda de Fernando Haddad mantém sigilo para um estudo técnico que embasou a queda da meta da inflação para o piso de 3% durante a gestão de Paulo Guedes. Atualmente, esse percentual é alvo de divergências. Economistas que souberam do sigilo ficaram preocupados com a falta de transparência e questionam que reter informações empobrece o debate sobre o tema.
Sigilos a documentos públicos se tornaram uma rotina na gestão de Jair Bolsonaro (PL). O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se comprometeu a revê-los. Já foram reavaliados 254 processos na CGU (Controladoria-Geral da União).
Nesse contexto, manter o sigilo a um estudo econométrico é considerado um contrassenso.
A discussão sobre a inflação e como combatê-la tem sido intensa neste início de governo. Lula já chegou a afirmar que se a meta de inflação está errada, que se mude a meta. Integrantes do governo já ventilaram essa possibilidade. Nos últimos dias, o ministro Haddad voltou a falar que talvez seja momento de mudar o período da meta.
O regime de metas é considerado um sucesso no Brasil desde a sua implantação, em 1999, por ajudar a ancorar expectativas. Segundo o economista José Júlio Sena, do FGV Ibre, o simples fato de o regime obrigar o governo a explicitar um objetivo numérico para a inflação evita que ele pense em valores elevados.
“Não parece haver regime alternativo. É o sistema que nos convém. Mesmo no período em que a administração da política monetária deixou a desejar, quando o juro foi reduzido fortemente sem justificativa [em 2011], ajudou a evitar o pior”, diz Sena.
Atualmente, as metas de inflação para este ano, 2024 e 2025 se mantêm, respectivamente, em 3,25%, 3% e 3%, com intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para mais ou para menos.
Quem acompanha o tema afirma que reter um estudo que trata da fixação desses valores prejudica uma melhor análise sobre quando e porque subir ou descer as metas.
“Um estudo que mostra a meta ótima da inflação numa economia como a do Brasil tem que vir a público, e especialistas precisam emitir opiniões, criticar, fazer sugestões. Não dá para entender esse sigilo”, diz Samuel Pessoa, pesquisador da área de economia e colunista da Folha.
Levantamentos desse tipo não são comuns, explica o também pesquisador Braúlio Borges, economista sênior da LCA.
“Entre 2000 e 2019, nenhum estudo havia amparado as decisões sobre metas. Em 2021 foi feito um estudo, mas não é público e continuará sob sigilo. Ficamos na mesma.”
Borges tentou pessoalmente conseguir o estudo. Em fevereiro deste ano, ele foi coautor de um artigo que defendia o aumento da meta de inflação. No texto, ponderava que esse indicador costuma ser revisto aleatoriamente, sem estudos para sustentar as mudanças no CMN (Conselho Monetário Nacional).
O texto teve muita repercussão. Integrantes da gestão de Paulo Guedes divulgaram entre os colegas que havia, sim, sido feito estudo para embasar a redução da meta de 3,25% para 3% na reunião do CMN de 24 de junho de 2021. Borges, então, foi em busca do documento por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
Na primeira resposta, a SPE (Secretaria de Política Econômica) da Fazenda negou a existência do estudo. Borges recorreu. Veio então a resposta de que o estudo existia, mas estava sob sigilo de cinco anos.
A reportagem da Folha foi informada de que haveria a possibilidade de o PPT (PowerPoint da apresentação), usado na reunião do CMN, não estar em sigilo e também fez o pedido via Lei de Acesso. Na primeira resposta, foi informada sobre o sigilo.
No recurso, a Folha argumentou que o parágrafo único do art. 20 do decreto nº 7.724 previa a liberação de documentos preparatórios após o seu uso. A chefia de gabinete da SPE respondeu que o estudo poderia ser utilizado em outras discussões, o que justificava a manutenção do sigilo.
“O PPT do estudo solicitado trata de metas para a inflação de forma abrangente, não para ano específico, podendo ainda ser utilizado para tomada de decisões. Logo, deve permanecer classificado como sigiloso até o fim do prazo de 5 anos estipulado no ato da classificação”, diz o texto.
A justificativa não faz sentido, segundo Fabiano Angélico, pesquisador sobre temas de transparência e integridade na Universidade de Lugano, na Suíça, e autor do livro “Lei de Acesso à Informação: Reforço ao Controle Democrático”.
“Na legislação, a figura do documento preparatório pode ser mantida em sigilo até que a decisão seja tomada”, diz o especialista. “A argumentação de que ele pode ser usado em qualquer reunião é uma pegadinha, porque não existe documento preparatório para sempre. Isso é falta de transparência.”
O advogado Bruno Morassutti, cofundador da Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada em LAI, diz que o sigilo pode ser revertido.
“O ministro da Fazenda, ou o superior dele, o presidente da República, ou a comissão mista de reavaliação de informação, colegiado que tem competência para revisar esse tipo de documento, podem tirar o sigilo”, afirma ele. “Inclusive existe uma recomendação do atual governo de revisar todas as decisões do governo anterior porque se sabe que houve problemas na classificação de informações.”
Pessoas que tiveram acesso ao estudo na época afirmam que ele é consistente e abrangente. O PPT tem cerca de 70 páginas com modelos matemáticos e teóricos, comparações internacionais e simulações dos efeitos com diferentes bandas para as metas, por exemplo.
O estudo utilizou um modelo de DSGE (Equilíbrio Geral Dinâmico e Estocástico) e chegou à conclusão de que a meta ótima para 2024 deveria ser menor do que a prevista até então. O estudo também destacou que o risco fiscal tende a desancorar as expectativas.
Dois integrantes do governo passado recordam que o sigilo foi solicitado, mas somente até a reunião do CMN e se declararam surpresos com a extensão do prazo.
Segundo tabela repassada pela assessoria do Ministério da Fazenda, há 197 diferentes tipos de documento em sigilo na sua esfera. Estudos sobre metas são utilizados de forma recorrente nas reuniões do CMN, o que justifica o sigilo, explicou o órgão.
“A Secretaria de Política Econômica ainda não localizou todos os documentos referentes ao modelo em questão. Sendo o conjunto localizado, uma nova avaliação acerca de seu sigilo poderá ser efetuada’, informou a assessoria.
ALEXA SALOMÃO / Folhapress