SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os cantores chegam para mais um dia de ensaios e contornam o edifício do Theatro Municipal, se desvencilhando dos meninos que ziguezagueam seus skates pelas ruas da República, no centro de São Paulo. Pela porta dos fundos, eles alcançam a sala de espetáculos e, com a roupa do corpo, se sentam nas cadeiras enfileiradas no proscênio.
O regente Roberto Minczuk cumprimenta a todos com um simpático boa-tarde e empunha a batuta, iniciando, em lá maior, a “Abertura” da ópera “O Guarani”, composta em 1870 por Carlos Gomes com libreto de Antonio Salvini e Carlo DOrmeville, que estreia na próxima sexta-feira, dia 12. Se a célebre “Abertura” permanece intacta em seu romantismo nacionalista, a montagem concebida pelo líder indígena Aílton Krenak propõe uma leitura decolonial e engajada da história, o que suscita um debate na cena lírica brasileira.
Dirigida por Cybele Forjaz, a ópera tem a participação da Orquestra e do Coro Guarani do Jaraguá. Abarcando a ideia ameríndia de polifonia humana, Peri ganha um duplo, vivido pelo ator guarani David Vera Popygua Ju, e uma segunda Ceci é interpretada pela atriz guajajara Zahy Tentehar.
“A música dos guarani é circular e serpenteia ao longo da encenação, trazendo uma nova temporalidade que nos coloca no presente e também nos projeta por sobre a ópera com uma visão crítica. Os cantos guarani nos arremessam profundamente ao interior de uma trama crivada de situações estereotipadas”, escreve Krenak, em artigo ainda inédito.
Na encenação, o coro indígena divide espaço com o Coro Lírico Municipal. Os indígenas ficam a todo momento no palco, num jogo de planos e profundidades. No primeiro ato, aparecem ao fundo, como se invisibilizados. No decorrer do drama, chegam cada vez mais perto da plateia, entoando cânticos na coda de cada um dos quatro atos.
A linguagem operística não faz parte da cultura dos povos originários. Deste modo, a música indígena não se mistura à composição de Gomes, mas reafirma a presença guarani na trama. Acentuando o contraste cultural, o duplo de Peri não canta em nenhum momento da ópera. Ele aparece sem voz, interagindo no palco com os cantores.
No fim do quarto ato, a palavra final é dada numa intervenção cênica de Tentehar. Visualmente, a cenógrafa Simone Mina dependura, em varas cênicas, retângulos transparentes onde são projetados desenhos do artista Denilson Baniwa, tematizando a cosmogonia dos povos originários.
David, liderança indígena que trabalha como ator desde os sete anos, afirma que a ópera de Gomes contém passagens de teor colonialista, que reforçam os estereótipos dos guarani. “Peri foi concebido como um personagem caricato. Não era nem sequer um guarani. Essas características de guerreiro e de herói se relacionam bem mais com o comportamento dos povos tupi”, ele afirma.
O libreto também o incomoda pelo tratamento dado aos portugueses. Na ópera, os colonizadores são pacíficos e convivem em harmonia com os indígenas. Apenas Gonzales, invasor espanhol, é tratado como vilão.
No desenlace da trama, Peri chega a renunciar à sua crença e se converte ao catolicismo para ficar com Ceci, retratada como mulher abobada e infantil. “Não dá para romantizar uma realidade brutal. Ele não renunciou à própria espiritualidade por uma questão de amor. Foi uma estratégia de sobrevivência diante da opressão”, diz David. “Nossa presença na ópera é importante para mostrar que, apesar dos portugueses e dos espanhóis, nós existimos no mundo contemporâneo.”
Neste sentido, a releitura de “O Guarani” retira o balé do terceiro ato, uma das características centrais da criação de Gomes. De fato, as montagens tradicionais traziam bailarinos fantasiados de indígenas, executando coreografias estilizadas. Ocorre que a exclusão fere o estatuto de “ópera ballo”, previsto pelo autor. A inserção do balé simbolizava uma abertura à tradição operística francesa, da qual Gomes foi um dos agentes.
“Il Guarany”, “ópera ballo” cantada em italiano, estreou no Teatro La Scala, em Milão. O idioma estrangeiro se deve ao contexto cultural da época, em que a Itália era o centro da composição e do estudo operístico do mundo. O libreto é uma adaptação do romance homônimo do escritor José de Alencar, publicado em 1857.
A trama se passa no ano de 1560, numa cidade próxima ao Rio de Janeiro, onde vive o fidalgo português dom Antônio de Mariz, interpretado por Andrey Mina. Sua filha, Ceci, papel de Nadine Koutcher e Débora Faustino, está prometida em casamento a dom Álvaro, encarnado por Guilherme Moreira.
Ao mesmo tempo, ela é cobiçada pelo indígena Peri, personagem de Atalla Ayan e Enrique Bravo, e pelo invasor espanhol Gonzales, vivido por Rodrigo Esteves e David Marcondes. Um subordinado de dom Álvaro mata por engano um indígena aimoré, e a família portuguesa passa a ser alvo da ira da aldeia. Entre idas e vindas, Peri se livra de Gonzales e foge com Ceci, conquistando seu amor.
“Não é possível encenar a obra como se fazia há 20 anos. Pintar o corpo de um tenor de vermelho é quase um etnocídio”, afirma Forjaz, a encenadora, que dirige sua primeira ópera. “Diante desse imbróglio conceitual, escolhemos explicitar os contrastes entre esses dois mundos, chamando atenção para a não presença guarani no libreto.”
O pensamento de Krenak e Forjaz, no entanto, não faz sentido para alguns estudiosos do tema. Na visão de Osvaldo Colarusso, maestro que nos anos 1980 esteve à frente do Coro Lírico Municipal, a presença de uma Ceci indígena é ilógica, dado que a personagem é branca. Do mesmo modo, classifica a exclusão do balé como “burrice”.
“É um modismo tentar dar uma roupagem politicamente correta para a obra. Certamente Carlos Gomes iria odiar”, diz ele. “São Paulo está ficando uma cidade difícil de ir à ópera. Este compositor deve ser exaltado como o primeiro artista brasileiro que ganhou o mundo, mas aqui cada administrador público quer impor sua ideologia ao teatro.”
Nascido em Campinas, no interior paulista, em 1836, Antônio Carlos Gomes perdeu a mãe ainda criança, vítima de um assassinato. Com o pai, formou uma banda, demonstrando talento para a música. Aos 15 anos, já compunha valsas, quadrilhas e polcas.
Em 1861, estreou “A Noite do Castelo, sua primeira ópera, no Theatro Lyrico Fluminense, chamando atenção do imperador dom Pedro 2º. Dois anos depois, apresentou “Joana de Flandres”, sua segunda ópera. Como reconhecimento da qualidade de seu trabalho, a Corte decidiu enviar o compositor para estudar na Europa.
A imperatriz Teresa Cristina, nascida em Nápoles, preferiu enviá-lo para estudar na Itália. Gomes conquistou Milão. Entre suas principais óperas, estão “Fosca”, de 1873 e “Lo Schiavo”, de 1889.
Pelo exotismo que agradava o público da época, “O Guarani” se tornou sua obra-prima, tendo sido elogiada pelo próprio Verdi e admirada por ninguém menos que Franz Liszt, presente numa das récitas. “O Guarani” só estrearia no Brasil em 1870, no Teatro Lírico Provisório, no Rio de Janeiro, no dia em que dom Pedro 2º comemorava seu aniversário.
Ao longo do tempo, a obra foi alvo de disputas ideológicas e apropriações políticas. Nos anos 1930, sua “Abertura” passou a anunciar “A Hora do Brasil”, programa instituído por Getúlio Vargas para divulgar os acontecimentos da vida pública.
Seis anos depois, Vargas aproveitaria o centenário do compositor para encomendar a tradução para o português de “O Guarani”. Em 1962, “A Hora do Brasil” passou a se chamar “A Voz do Brasil” e, durante a ditadura militar, a abertura de “O Guarani” chegou a ser excluída da programação. Somente em 1985, no governo José Sarney, a obra de Gomes voltaria a tocar no rádio.
Autor do livro “Ópera Flutuante: Teatro Lírico, Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado”, da Edusp, Marcelo Diego afirma que, durante boa parte do século 20, apreciar a música de Gomes não era bem visto, podendo indicar adesão ao conservadorismo político.
Ele conta que a Semana de Arte Moderna de 1922 já havia contribuído para o seu apagamento. Oswald e Mario de Andrade criticavam a ideia de Brasil que o compositor tinha, alimentando a crença de que a ópera seria destinada a um público elitista, visão preconceituosa ainda em vigor na imprensa e em coletivos dito progressistas.
No século 19, os teatros ficavam como estão atualmente, lotados. “Todos iam ao teatro lírico, do padeiro ao nobre. Era o lugar onde havia uma mediação social, em que todos conviviam, apesar das rígidas hierarquias sociais daquele tempo”, afirma Diego.
Ao contrário das ideias modernistas, o nacionalismo de Gomes era uma importação europeia sua formação e composição eram italianas e seguiam a escola de Verdi. Ao contrário do romance, a ópera “O Guarani” nem sequer tem a ambição de elaborar um mito fundador do Brasil. Seu libreto deseja contar uma história de amor.
Por isso, a montagem que evidencia a questão indígena e a constituição identitária do país talvez não esteja de acordo com a principal inquietação do autor da obra. “A ópera não tem nada de brasileiro”, afirma Marcos Menescal, que integra a diretoria artística do Municipal do Rio de Janeiro. Ele não se entusiasma com a ideia de um duplo para Peri. No romantismo, era preciso encontrar um herói aos moldes do cavaleiro medieval.
Arbitrariamente, Gomes escolheu o indígena, obtendo sucesso na Itália pela temática exótica, tão comum na ópera. Menescal diz que as melhores interpretações de Peri acontecem quando o tenor não age exatamente como indígena, entrevendo a artificialidade do herói romântico. Ele pensa que a execução de cânticos de povos originários ao término dos atos não representa um incômodo, mas pode soar indesejada, porque não respeita a delimitação do libreto.
Diante do levante identitário, os melômanos se digladiam ao redor do mundo em debates sobre as formas de adaptar óperas de séculos passados ao padrão comportamental do tempo presente.
Em 2018, a Ópera de Florença encenou uma versão feminista de “Carmen”, de Georges Bizet. A personagem principal matava dom José na cena final, o que foi tido como blasfêmia pelos “operagoers”. Já “Madame Butterfly” caiu num limbo. É quase impensável encenar a ópera de Giacomo Puccini numa montagem tradicional, reproduzindo a caricatura de uma gueixa.
Em geral, os diretores têm liberdade para inovar em suas ambientações, desde que música e libreto sejam preservados. É um consenso contestado, diz Menescal. “Na minha visão, o maestro e os cantores ainda são as principais figuras de uma ópera.” A partir deste raciocínio, a liberdade ilimitada dada a encenadores pode ensejar encenações impertinentes.
Maria Alice Volpe, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, pesquisa a música brasileira dos séculos 18 e 19. O caso de “O Guarani”, ela afirma, deve ser analisado sob uma perspectiva histórica.
“Era outra época, com outro projeto de nação, com outro projeto identitário, e a narrativa mítica da fundação nacional consumada pela união do noble sauvage com a mulher portuguesa, construída por esse romance, alimentou o imaginário social da época.”
Volpe pensa ser positivo encenar a obra-prima de Gomes em 2023. “É compreensível também que a construção dessas alternativas se dê em diálogo com os povos originários, em conformidade com as políticas públicas atuais e as pautas decoloniais”, diz ela. “É claro que toda alteração colocará em xeque a identidade da obra ou até mesmo a integridade da obra. As releituras não deixam de ser tentativas de salvar a obra do cancelamento. Isso, em si, já torna válida a produção.”
Autor da primeira tese sobre a Ópera Nacional, o diretor André-Heller Lopes prefere antes incentivar que os povos originários possam compor suas próprias óperas. “Está ficando monótona essa tendência a uma leitura quase sempre superficial do tema. Nem toda obra de outro século é racista ou sexista”, afirma. “Não há mesa espírita que faça Carlos Gomes descer e pedir desculpas por ter sido um homem de seu tempo.”
O GUARANI
Quando 12/5, 16/5, 17/5 e 19/5 às 20h; 13/5, 14/5 e 20/5 às 17h
Onde Theatro Municipal – pr. Ramos de Azevedo s/n
Preço R$ 12 a R$ 158
Classificação Livre
Autoria Carlos Gomes, Antonio Salvini e Carlo DOrmeville
Elenco Atalla Ayan, Nadine Koutcher, Rodrigo Esteves, Enrique Bravo, Débora Faustino, David Marcondes, David Vera Popygua Ju, Zahy Tentehar Guajajara, Lício Bruno, Guilherme Moreira, Andrey Mira, Carlos Eduardo Santos, Orlando Marcos, Pedro Gustavo Lassen
Direção Ailton Krenak e Cybele Forjaz
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress