SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 2014, o historiador Boris Fausto lançou o livro “O Brilho do Bronze”, um diário escrito ao longo dos meses seguintes à morte de Cynira Stocco, com quem ele havia sido casado por quase cinco décadas.
Em um trecho, Boris comenta uma entrevista de dom Paulo Evaristo Arns. “A certa altura, ele diz: Estou preparado para a morte, mas não tenho pressa. Da minha parte, pressa também não tenho. Algum dia estarei preparado?”
Preparado ou não, um dos maiores historiadores do país, autor de livros fundamentais para a compreensão do Brasil do século 20, morreu nesta terça-feira (18) aos 92 anos em São Paulo. O velório será na quarta-feira (19).
Em junho de 2021, havia sofrido um AVC (acidente vascular cerebral), mas teve recuperação razoável nos meses seguintes.
“O Brilho do Bronze” é o ápice da fase memorialista do autor, que começou com “Negócios e Ócios: Histórias da Imigração” (1997) e se estendeu até “Vida, Morte e Outros Detalhes” (2021), com produções de outros gêneros entre eles. São livros em que Boris une as reminiscências da vida familiar, da comunidade judaica e do cotidiano paulistano, além de reflexões sobre temas diversos, da finitude ao futebol.
Embora escritas com precisão e graça, não foram as obras desse período que o consagrou. Seu primeiro livro, “A Revolução de 1930” (1970) influenciou a sua geração de historiadores e as seguintes. Não tardou para que fosse visto como um clássico, assim como “Crime e Cotidiano” (1984), um estudo pioneiro sobre a criminalidade em São Paulo.
Ele pôde se aprofundar nas pesquisas para esse livro graças, entre outros fatores, à sua experiência como advogado, seu primeiro ganha-pão. Boris Fausto, hoje quase sinônimo de historiador voltado às questões brasileiras, não dedicou sua juventude a esse campo de estudo diretamente. Foi, como ele costumava dizer, um historiador tardio.
Nascido em São Paulo em 1930 (justamente o ano-tema do seu livro mais festejado), era o primogênito de uma família de origem judaica. Seus pais, Simon e Eva, tiveram outros dois filhos, Ruy, que se tornou filósofo de prestígio, e Nelson, médico de carreira bem-sucedida nos EUA.
Um episódio traumático afetou sua infância na verdade, toda a vida. Quando ele tinha 7 anos, sua mãe começou a passar mal em uma praia de Santos e morreu instantes depois. Negociante de café, imigrante da classe média paulistana, Simon entregou os meninos para que fossem criados pela tia Rebeca, irmã da mãe.
O abalo tornou os irmãos ainda mais próximos. Passavam horas jogando futebol no quintal da casa da avenida Angélica, em Higienópolis, com Boris como goleiro. Vem dessa época a paixão pelo Corinthians, um contraponto à racionalidade na vida pessoal e na carreira. Seu grande ídolo foi o meia José Augusto Brandão, que jogou no time alvinegro nas décadas de 1930 e 1940.
Interessava-se por literatura desde menino, e os estudos em colégios tradicionais de São Paulo também aguçaram nele a curiosidade pela política. Essa combinação o conduziu ao curso de direito acreditava que receberia uma formação ampla no campo das humanidades; além disso, eram poucas as opções de carreira no fim dos anos 1940, quando ele entrou na faculdade no Largo de São Francisco.
Sem entusiasmo pelo curso, dedicou-se mais às questões políticas do que às jurídicas. Ao lado do irmão Ruy, aderiu enfaticamente ao trotskismo, “uma doença infantil contraída na idade adulta, que durou dez anos”, como disse em uma longa entrevista no livro “Leituras Críticas sobre Boris Fausto”, organizado pela também historiadora Ângela de Castro Gomes.
Alguns fatos decisivos para a trajetória de Boris se concentram na primeira metade da década de 1960. Casou-se em 1961 com a educadora Cynira Stocco Fausto (1931-2010), com quem teve dois filhos, Sérgio, que se tornaria cientista político e superintendente da Fundação Fernando Henrique Cardoso, e Carlos, antropólogo dedicado à pesquisa de povos indígenas.
No ano seguinte, Boris foi aprovado em um concurso para procurador de Estado e logo recebeu um convite para trabalhar como consultor jurídico da USP. Até então, dividia um escritório de advocacia com colegas da São Francisco.
Com interesses intelectuais que as atividades jurídicas não satisfaziam e estimulado por Cynira, ele começou a estudar história na mesma universidade, em 1963. Antes de se dedicar integralmente às pesquisas e às aulas de história do Brasil, manteve por mais de duas décadas ambas as carreiras.
Foi, por outro lado, um período de apreensão crescente. Algumas semanas depois do golpe militar, Boris soube que estava sendo procurado por policiais devido ao seu passado de militante trotskista, embora, a essa altura, já se distanciasse dos dogmas da esquerda. Decidiu se apresentar no Dops e ficou preso por três dias.
Seis anos depois, quando o país estava sob a forte repressão do AI-5 (Ato Institucional nº 5), o susto foi maior. Uma vizinha de Boris e Cynira, que havia abrigado militantes da luta armada, temia estar sendo vigiada por homens da Oban (Operação Bandeirante), unidade de investigação criada pelo Exército sim, ela estava.
A vizinha foi pedir ajuda ao casal e acabou presa, assim como Boris. “Me deram coronhadas, pontapés e me jogaram no fundo de uma C-14 [caminhonete muito usada pelos agentes da repressão]”, ele contou na entrevista para o livro “Leituras Críticas sobre Boris Fausto”.
Só não foi torturado, acredita, graças ao arquiteto Rodrigo Lefèvre. Depois de apanhar muito, o integrante da ALN (Aliança Libertadora Nacional) estava a tal ponto debilitado que era incapaz de oferecer resistência. Ao ver Boris, Lefèvre disse aos funcionários da Oban que ele não estava envolvido com a resistência armada, afirmação que o salvou depois de horas de aflição.
Foi um episódio menor diante de tantas situações com pessoas mortas ou torturadas nessa época, mas o suficiente para Boris sentir a ameaça da “revolução”, como as Forças Armadas se referem ao golpe de 1964. Naquele mesmo ano, 1970, ele publicou em livro as suas conclusões sobre outra revolução, essa sem aspas, a Revolução de 1930.
Até então, prevalecia uma visão que Boris chama no seu livro de “teoria do dualismo das sociedades dependentes latino-americanas”, uma simplificação, segundo ele, defendida pelos teóricos do Partido Comunista. Autores desse grupo viam a movimentação de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, como uma revolução da burguesia ou das classes médias.
Ao se dedicar a esse período para seu doutorado, Boris se deu conta que a realidade era bem mais complexa. O fim da República Velha era resultado, sobretudo, de conflitos no interior das oligarquias regionais, uma tensão que vinha se acumulando nos anos 1920.
O trecho final da introdução de “A Revolução de 1930” deveria servir de alerta para a historiografia como um todo. “Como as duras lições da história rompem mais lentamente do que se imagina uma carapaça ideológica formada ao longo do tempo, talvez este trabalho possa contribuir, indiretamente, para o processo de ruptura.”
Diante da repercussão do livro, provavelmente o mais conhecido de Boris, ao menos essa carapaça foi rompida.
Nos anos seguintes, alçado à posição de professor do departamento de ciência política da USP, ampliou o leque de assuntos abordados em seus estudos. Sua pesquisa dos movimentos operários no período que vai de 1890 a 1920 resultou no livro “Trabalho Urbano e Conflito Social”, obra também tomada como referência, mas que não resistiu tão bem ao tempo quanto “A Revolução de 1930”.
Vieram livros de larga abrangência, como “História do Brasil” (1994), um tijolo de quase 700 páginas escolhido pelo prêmio Jabuti como um dos melhores do ano na categoria didáticos, e “Fazer a América – A Imigração em Massa Para a América Latina”, do qual foi o organizador.
Em outros, no entanto, Boris adotou os métodos da micro-história em vez de narrativas abrangentes, o pesquisador diminui expressivamente a escala de observação do seu objeto. Estão nesse campo obras como “Negócios e Ócios” (1997), vencedora do Jabuti em ciências humanas.
Também sob essa lente mais fechada, Boris lançou “O Crime do Restaurante Chinês – Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30” (2009) e “O Crime da Galeria de Cristal” (2019), livros que reafirmam seu interesse por crimes complexos, em contextos (onda de imigração, por exemplo) que ajudam a explicar um período da capital paulista.
Nos textos mais curtos para a imprensa, Boris optava por comentar a política e a história recente do país. Na Folha de S.Paulo, onde foi colunista de 1998 a 2003, escreveu um artigo memorável sobre os 30 anos do AI-5.
Aliás, sempre foi um atento leitor de jornais. Seu avô materno, que era cego, pedia a ele que lesse as reportagens do jornal O Estado de S. Paulo. Boris tinha apenas 5 anos.
Assim como perdeu as ilusões com o trotskismo, Boris demonstrou nas últimas décadas desapontamento com o PSDB, do qual havia sido entusiasta na fundação, em 1988. “O PSDB se transformou num conglomerado que tem muito pouco a ver com o que foi”, disse ao UOL em 2018. Curiosamente o irmão do meio, Ruy, grande estudioso do marxismo, também viveu um desencanto partidário. Havia sido eleitor do PT, mas se decepcionou com a sigla.
O livro “Vida, Morte e Outros Detalhes”, lançado por Boris em 2021, foi, em grande parte, impulsionado pela morte de Ruy no ano anterior. O caçula Nelson havia morrido em 2012.
A obra é farta de memórias da infância, especialmente da convivência dos irmãos. No final do texto “A Tribo”, Boris escreveu: “O trio do futebol da avenida Angélica desapareceu há muitos anos. Restou apenas o goleiro solitário que espera pela partida, sem nenhuma pressa”.
NAIEF HADDAD / Folhapress