CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Os dois cineastas de língua inglesa que já apresentaram seus postulantes à Palma de Ouro deste ano foram, ao menos nesta primeira semana, aqueles que exibiram os trabalhos mais disruptivos da seleção deste Festival de Cannes.
Se britânico Jonathan Glazer aterroriza o espectador com o poder da sugestão, ao retratar uma família que divide o muro com o campo de concentração de Auschwitz, em “The Zone of Interest”, o americano Todd Haynes vai pelo caminho oposto ao escrachar e não se levar a sério em “May December”, exibido neste sábado (20).
Não que seu filme lide com temas banais. Ele é um labirinto no qual o público por vezes se perde, mas acaba sempre encontrando algum dilema moral pela frente. Abuso sexual e psicológico, relações de poder, consentimento e obsessão são tratados com deboche, sem que para isso Haynes os menospreze.
Na história, Natalie Portman interpreta uma atriz que decide acompanhar o dia a dia da mulher que está prestes a interpretar num filme independente. Esta, vivida por Julianne Moore, a princípio parece uma dona de casa banal, sem muito a oferecer para um roteirista. Até que seu marido entra em cena.
Primeiro achamos que ele é seu filho, por causa da idade mais próxima dos adolescentes que passeiam pela casa do que da personagem de Moore. Mas não leva muito tempo até eles trocarem um selinho, que abre o caminho para o espectador entender o porquê de aquelas pessoas serem figuras públicas.
A atriz de Portman está ali para entender o romance que, há duas décadas, estampou as capas dos tabloides por envolver uma mulher de 30 e poucos anos e um adolescente. Sua chegada, claro, revira a aparente paz daquele lar -que na verdade pode implodir a qualquer momento.
Haynes conta a história sem poupar afetação. “May December” é um filme que está muito mais próximo do experimentalismo de “Velvet Goldmine”, de 1998, que marcou sua estreia em Cannes, do que de seus últimos trabalhos, mais formais -“O Preço da Verdade”, “Sem Fôlego” e “Carol”, que lhe rendeu a Palma Queer em 2015.
Como no último, ele tem duas atrizes de potência excepcional à frente, mas que estão mais a serviço de um humor mordaz do que do melodrama romântico que o filme lésbico ofereceu.
“May December”, além da relação íntima entre as protagonistas femininas, recicla de “Carol” as imagens granuladas, de textura forte, que lhe dão cara de filme de época. E, mais uma vez, usa uma trilha sonora forte para interromper as imagens sem cerimônia, com acordes de programa policial dos anos 1990.
O affair proibido em torno do qual a trama gira, afinal, é fruto daquela década, mais permissiva, mas nem tanto. A alusão ao período permite ainda que Portman exagere nas caras e bocas quando tentar encarnar a outra personagem.
Ela, por sua vez, testa os limites morais do espectador por outro ângulo, pondo a própria indústria cinematográfica e as celebridades que lotam Cannes sob análise. Moore e Portman se complementam ao longo do filme, mas é a última que termina por roubar a cena, transitando do jocoso ao ar arrogante, de sua própria personagem à da colega de cena.
Haynes tenta levar a Palma de Ouro pela quinta vez. “May December” não parece ter estofo para chegar até lá, mas é difícil pensar no filme saindo de mãos vazias da Riviera Francesa.
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress