SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Esqueça por um momento o rei Charles 3º, do Reino Unido, ou as monarquias de outros países europeus, como Espanha, Suécia e Dinamarca. Aos poucos, produções culturais fora da África se dedicam a jogar luz sobre figuras da nobreza que fizeram história no continente.
A Netflix lançou recentemente a primeira temporada de “Rainhas Africanas: Nzinga”, com quatro episódios sobre a mulher que, no século 17, comandou Ndongo e Matamba, reinos da África Central localizados no território onde atualmente está Angola.
Por aqui, o instituto Literáfrica prepara uma exposição com pinturas que retratam 54 monarcas do continente. Com sede no centro de São Paulo, a entidade é dirigida por João Canda, escritor e produtor cultural angolano radicado no Brasil.
Claro que existe uma disparidade orçamentária da iniciativa do serviço de streaming americano em relação ao projeto da produtora brasileira, mas um ponto em comum chama a atenção: a presença de Jinga, também chamada de Nzinga, Njinga e Ginga, entre outras variáveis decorrentes do idioma banto.
De 1622 a 1663, a rainha desafiou mais de dez governadores portugueses, que queriam levar suas tropas África adentro a qualquer custo. As forças de Jinga não foram suficientes para barrar completamente o avanço lusitano, que buscava mulheres e homens negros para trazer para o mercado brasileiro, sedento por mão de obra escravizada.
No entanto, a monarca se notabilizou por encabeçar a resistência ao colonialismo -além de líder militar, era uma diplomata de habilidade rara.
No início de 2019, a editora Todavia publicou “Jinga de Angola”, biografia assinada pela historiadora americana Linda Heywood.
Produzida por Jada Pinkett Smith, a série mostra o percurso da jovem envolvida em treinamentos para se tornar uma guerreira que, anos depois, conquista o poder e passa a comandar um exército que tinha, segundo a produção da Netflix, cerca de 100 mil integrantes.
“Jinga foi mãe, filha, amante, guerreira, política”, diz Peres Owino, uma das roteiristas da série. “Ela vivia em um reino onde só os homens chegavam ao poder. Foi, então, quem abriu as portas naquela região para a ideia de que uma mulher poderia se tornar rainha.”
É evidente que Jinga ocupa a figura de heroína, com cenas de ação na tradição de Hollywood, mas a produção não a mostra de maneira irretocável, quando se considera o olhar do público contemporâneo. A monarca, por exemplo, tinha escravizados e chegou a negociar alguns deles com os portugueses.
“Alguém te apresenta duas alternativas: ou você se mata com um tiro ou com uma facada. É o que eu chamo de ‘falsa sensação de ter opções’. Era a mesma situação naquele contexto em que Jinga vivia”, afirma a roteirista.
“Um dos aspectos difíceis ao lidar com fatos históricos é evitar que se ponha uma lente do século 21. Precisamos considerar o que aquela pessoa sabia e o que não sabia no período em que viveu, ser generoso em vez de julgar.”
Segundo Owino, esse mergulho na era colonial foi feito, sobretudo, com base em dados levantados por historiadores angolanos, e não a partir de relatos de pesquisadores estrangeiros, muitos deles marcados por uma visão estereotipada.
É, aliás, o que se costuma chamar de “docudrama”: a narrativa intercala cenas com atores na pele das figuras da época (Adesuwa Oni é a protagonista) e comentários de estudiosos sobre o passado do continente, como Rosa Cruz e Silva, diretora do Arquivo Nacional de Angola.
A segunda temporada de “Rainhas Africanas” vai apresentar a história de Cleópatra, do Egito, a partir de maio.
Assim como a série da Netflix, a exposição sobre monarcas africanos, em montagem no Brasil, se amparou em pesquisas realizadas por especialistas que vivem ou viveram no continente. Concebido por João Canda, angolano que mora no Brasil desde 2014, o projeto teve apoio de conterrâneos dele, como os historiadores Paulo Gamba e Gilberto Guedes e o escritor Dog Murras.
“Sempre me incomodou a forma como se olha para o continente africano. Os africanos costumam ser vistos como escravizados ou descendentes de escravizados, o que atenta contra a autoestima dos povos negros ao redor do mundo”, afirma Canda.
De acordo com o diretor da Literáfrica, as invasões de territórios africanos pelos países europeus interromperam ou deixaram em segundo plano histórias de grandes impérios, bem-sucedidos em áreas como economia e ciência.
Os 54 monarcas da exposição estão divididos em três fases basicamente. De início, a era pré-colonial, ou seja, o continente antes dos europeus, período em que aparece, por exemplo, a princesa Yennenga, considerada “a mãe” de Burkina Fasso.
Depois, vem a fase colonial, na qual estão soberanos como Jinga e Menelique 2º, imperador da Etiópia no século 19 e fundador da atual capital do país, Adis Abeba. Também é desta época Shaka Zulu, chefe dos zulus, povo que ocupa áreas que hoje correspondem a porções de África do Sul, Moçambique e Zimbábue, entre outros países. Ele foi um dos principais nomes da resistência ao domínio britânico na região.
Por fim, as décadas marcadas pelas independências, no século 20, na qual aparecem monarcas como Muhammad 8º, o primeiro rei da Tunísia depois que o país se desvinculou da França.
Todas as pinturas são de autoria de Sérgio de Oliveira, baiano que vive em São Paulo há mais de duas décadas. Com o pacote de informações a respeito de rainhas e reis que ele recebe de Canda e dos demais pesquisadores, o artista tem aprendido sobre a cultura africana como jamais havia imaginado.
O uso de técnicas varia de uma pintura para outra, o que todas têm em comum é o uso da cor marrom e das suas variações.
“Tenho esse projeto há mais de cinco anos, mas não encontrava um artista que tivesse um traço diferente para retratos. Quando vi os trabalhos do Sérgio, pensei na hora, é ele”, conta Canda.
A exposição será aberta em São Paulo em novembro deste ano. Depois estão previstas passagens por Rio de Janeiro, Salvador, Brasília e Macapá.
RAINHAS AFRICANAS – NZINGA
Onde Disponível na Netflix
Classificação 14 anos
Elenco Adesuwa Oni, Philips Nortey e Zethu Dlomo
Produção EUA, 2022
Criação NneNne Iwuji e Peres Owino
NAIEF HADDAD / Folhapress